JUSTIÇA IMPERFEITA
SÁBADO, 21-10-2020 por António Ventinhas

Se queremos melhorar, não podemos defender que tudo tem de continuar na mesma. Não há evolução sem mudança.


Esta semana o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público remeteu ao Ministério da Justiça um documento onde propõe 50 medidas contra a corrupção. É bom recordar que o Governo constituiu um grupo de trabalho destinado a apresentar uma estratégia nacional contra a corrupção que culminou com a elaboração de um documento que foi colocado em consulta pública.

Grande parte das associações representativas dos profissionais forenses não foram ouvidas durante esse processo e nem sequer foram consultadas formalmente para se pronunciarem quanto ao teor do documento, ao contrário do que sucedeu em outras ocasiões. O documento assenta em cinco eixos fundamentais, a saber, prevenir a corrupção, combater a corrupção com meios adequados, valorar a colaboração do arguido, melhorar a celeridade e eficácia no combate à corrupção, bem como alteração das molduras penais e no regime de execução de penas nos ilícitos criminais referentes à criminalidade económico-financeira. Só de uma forma integrada é possível atacar um problema que causa tantos efeitos negativos na sociedade portuguesa.

Se queremos melhorar, não podemos defender que tudo tem de continuar na mesma. Não há evolução sem mudança. Há algumas medidas que aqui destaco, como por exemplo, voltar a reabrir-se a discussão sobre a criminalização do enriquecimento ilícito. Este é um tema que merece ser debatido, uma vez que existem soluções que permitem a punição de quem enriqueceu ilegalmente, sem que se violem disposições constitucionais. A valoração da colaboração do arguido no processo penal também é outro tema que deve ser tratado. Não, não propomos um modelo igual ao do Brasil. Propugnamos que a colaboração activa e relevante do co-autor ou cúmplice de crimes económicos ou financeiros poderá beneficiar de dispensa de pena ou atenuação especial da pena, desde que se verifiquem vários pressupostos cumulativos que revelem o seu arrependimento e a vontade de colaborar para a descoberta da verdade. Nesses pressupostos, destaco a entrega das vantagens obtidas ilicitamente e a revelação de informações e prova que contenham indicações precisas sobre o crime e os comparticipantes envolvidos, incluindo os objetivos, atividades e funcionamento, a duração e informações específicas sobre datas, locais, conteúdo e participantes.

O momento determinante para se aferir da relevância da colaboração positiva do arguido deverá ser o do encerramento do inquérito, competindo ao Ministério Público propor ao juiz de julgamento a dispensa ou atenuação da pena, caso entenda que se verificam os pressupostos referidos na Lei. A dispensa de pena será ponderada quando a colaboração do arguido tenha sido prestada antes do início do inquérito ou, se no decurso deste, a sua colaboração se tenha relevado essencial para o Ministério Público reunir provas que permitam indiciar suficientemente o cometimento do crime e os seus responsáveis. A atenuação especial de pena será equacionada quando a colaboração for prestada numa fase em que o contributo do arguido não foi essencial, mas meramente relevante.

Na fase de julgamento, entendemos que deverá existir renúncia à produção de prova em julgamento relativamente aos arguidos que confessarem crimes punidos com pena superior a 5 anos de prisão, seguindo-se o mesmo regime que actualmente vigora para os crimes punidos com pena inferior a 5 anos. Para além disso, defendemos que o Ministério Público possa propor a redução do máximo da moldura da pena, nos casos em que o arguido confesse ou colabore de forma essencial na descoberta da verdade, na fase de julgamento.

Na fase de recurso defendemos mudanças no regime de recursos para o Tribunal Constitucional. No nosso entendimento, não deve ser limitado o direito de recurso para este tribunal. No entanto, entendemos que em determinados casos o recurso não deverá ter efeito suspensivo. Se um arguido é condenado na primeira instância, no Tribunal da Relação e no Supremo Tribunal de Justiça, deverá iniciar o cumprimento da pena a partir desse momento. Se três tribunais diferentes condenaram um arguido, somos da opinião que o cumprimento da pena não se deve eternizar. A própria noção de trânsito em julgado de uma decisão implica a insusceptibilidade de recurso ordinário, sendo certo que o recurso para o Tribunal Constitucional tem cariz excepcional (visa apreciar a constitucionalidade das normas e não a reapreciação da decisão do caso).

Na fase da execução da pena também propomos alterações, ou seja, os critérios de concessão da liberdade condicional devem ser mais apertados por um lado, mas deverão ser flexibilizados se o condenado durante o cumprimento da pena restituir o dinheiro ou as vantagens que obteve ilicitamente.

Por último, a distinção clássica entre prevenção e repressão da corrupção não é tão clara como parece. As penas, expoente máximo da repressão, encerram em si elementos de prevenção geral e especial. A aplicação das penas transmite um sinal claro à comunidade sobre como a prática de determinados actos é censurada pela comunidade. Por essa razão, impõe-se uma revisão da moldura penal dos crimes que integram a chamada criminalidade económico-financeira. Não é defensável que um crime como a participação económica em negócio seja punido com a pena máxima de 5 anos de prisão, quando um crime de falsificação de documento pode ser punido da mesma forma.

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