JUSTIÇA IMPERFEITA
SÁBADO, 10-09-2020 por António Ventinhas

O legislador português tem consagrado de forma expressa que a colaboração dos arguidos em determinadas ocasiões pode levar à atenuação especial da pena ou até à sua dispensa.


Nas últimas semanas, a propósito do processo em que é arguido Rui Pinto e por causa do novo plano de combate à corrupção apresentado pelo Governo, a discussão sobre a relevância da colaboração dos arguidos tem assumido uma especial relevância. Sobre esta matéria há duas questões centrais que se colocam, a primeira é saber se a confissão ou a colaboração do arguido na descoberta da verdade deverá relevar e permitir a aplicação de uma pena mais suave ou até a dispensa da mesma e a segunda é em que condições tal poderá ocorrer. Nesta sede é importante explicar que, entre outros aspectos, a atenuação especial da pena implica uma redução do limite máximo da pena de prisão em um terço e a dispensa importa o não cumprimento.

Na determinação da medida concreta da pena, o Código Penal estabelece que as condutas posteriores à prática do crime têm relevância e os tribunais têm valorado positivamente a confissão, o arrependimento e a colaboração com a justiça quando aplicam as penas. A determinação destas tem em conta a culpa do arguido, mas também razões de prevenção geral e especial, pelo que a demonstração por parte do arguido, em julgamento, de que interiorizou o mal que fez, em regra, leva a aplicação de penas mais brandas. Como estratégia processual há muitos advogados que aconselham a que os seus representados assumam esta postura em julgamento, pois sabem que tal poderá trazer vantagens aos seus clientes.

O legislador português tem consagrado de forma expressa que a colaboração dos arguidos em determinadas ocasiões pode levar à atenuação especial da pena ou até à sua dispensa. No Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, no seu artigo 31º, encontra-se expressamente previsto que o agente que auxiliar concretamente as autoridades na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis, particularmente tratando-se de grupos, organizações ou associações, pode ver a sua pena ser-lhe especialmente atenuada ou ter lugar a dispensa da mesma. Esta norma vigora entre nós pacificamente desde 1993, aplicando-se aos crimes relacionados com o tráfico de estupefacientes. Na Lei nº 52/2003, de 22 de Agosto ( Lei de combate ao terrorismo), no seu artigo 2º, nº5, o legislador previu um mecanismo idêntico. O artigo 374ºB, nº2, alínea a) do Código Penal prevê relativamente aos crimes de corrupção que a pena é especialmente atenuada se o agente até ao encerramento do julgamento em primeira instância auxiliar concretamente na obtenção ou produção de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis. Por outro lado, o regime aplicável às associações criminosas, ao branqueamento de capitais e à corrupção também prevê a protecção dos denunciantes, ainda que os mesmos tenham estado envolvidos na prática dos factos ilícitos. O nosso regime legal já valoriza positivamente quem colabora com a Justiça, mas esses mecanismos podem e devem ser aperfeiçoados e amplificados, o que se espera venha a acontecer no âmbito da estratégia nacional contra a corrupção. Tal como na investigação do tráfico de droga ou terrorismo, no âmbito do combate à corrupção, a colaboração de alguns dos arguidos que se encontram inseridos em esquemas complexos é muito importante para acelerar a investigação e descobrir mais elementos de prova. Por exemplo, a consagração de normas similares às que vigoram na legislação que pune o tráfico de estupefacientes ou o terrorismo iria melhorar o combate à corrupção. É preciso também densificar quais as situações em que se aplica a atenuação especial da pena ou a sua dispensa, uma vez que já ocorreram casos em que a única pessoa condenada foi a que colaborou. A definição de um regime jurídico de colaboração dos arguidos com o sistema judicial não se trata de uma novidade, nem implica necessariamente a transposição cega de regimes de outros países. Há muitos mecanismos que vigoram entre nós que podem ser melhorados. A diabolização da valorização da colaboração dos arguidos é algo que não tem razão de ser, uma vez que se trata de uma realidade que já existe para certo tipo de crimes. É curioso que algumas pessoas que nunca colocaram em causa o regime aplicável ao tráfico de estupefacientes se insurjam quando está em causa a corrupção…

O Governo apresentou a semana passada a sua estratégia nacional contra a corrupção. O primeiro grande teste surgirá já no próximo orçamento de Estado. No que concerne à consulta pública do documento, a mesma apresenta muitas dificuldades para os profissionais forenses. A concretização em clausulado é essencial para sabermos qual o regime jurídico que se pretende consagrar. Como todos sabemos, em questões tão sensíveis, o diabo está nos detalhes, como diz o povo. Uma mudança de uma vírgula ou de uma única palavra poderá alterar por completo todo o sentido do que se está a discutir. A título exemplificativo, o Governo pretende acabar com os megaprocessos durante a fase da investigação criminal. De que estamos a falar? Será que se pretendem inviabilizar todas as grandes investigações que só têm sentido se forem percebidas no seu conjunto? Um arguido poderá suscitar a cessação da conexão processual e parar a investigação quando ela está prestes a chegar a elementos decisivos? O “fatiamento” de alguns processos será um desastre para algumas investigações e dificultará muito o combate à criminalidade económico-financeira. Com uma norma deste género só se investigará a pequena corrupção.

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