Dispõe a Constituição da República Portuguesa que o Ministério Público é uma Magistratura, autónoma e independente do poder executivo.
Já no domínio da designação do representante português no Eurojust, cargo de relevância crucial na cooperação judicial europeia e na articulação da investigação da criminalidade transnacional, assistimos a uma alteração legislativa no sentido de tal designação passar a ser da responsabilidade do Governo.
Em momento recente, no processo de escolha do Procurador Europeu Português, ao invés de se respeitar a vontade expressa pelos Estados Membros participantes no Regulamento da União Europeia, ficou evidenciada a vontade do Governo de condicionar o processo. Em vez de o processo de seleção ser de modo a assegurar a independência do Procurador Europeu, com a criação de um comité independente e reduzir ao máximo a intervenção política nessa escolha, o que é certo é que, na prática, foi notória uma acentuada interferência política.
É importante ter em conta que o Procurador Europeu tem por função investigar a criminalidade económico-financeira, designadamente de fraudes na obtenção de fundos comunitários. E no momento em que se aproxima o início da injecção de grandes fluxos de capitais nos países comunitários, decorrente da execução do Programa de Recuperação e Resiliência, vulgarmente designado de bazuca europeia, é preocupante esta ingerência do Governo na designação do responsável pela investigação criminal de fraudes na atribuição e utilização de tais fundos.
O Governo designou três magistrados que apresentou como os seus candidatos e que foram avaliados por um comité de selecção independente. O júri internacional graduou os candidatos e remeteu os resultados ao Conselho da União Europeia para que este escolhesse um deles. O parecer do comité não é vinculativo, no entanto, apenas em dois casos (Portugal e Bélgica) o Conselho da União Europeia não respeitou a graduação do painel de especialistas que avaliou os candidatos. Qual a razão porque tal aconteceu? A resposta foi conhecida esta semana. O Governo teve uma intervenção decisiva na escolha do Procurador Europeu português, pois designou três candidatos, quando na verdade, só queria que fosse escolhida uma pessoa em concreto e fez todo o possível para que tal acontecesse.
Foram desrespeitados os valores de transparência e isenção que cabia ao Governo respeitar, junto das instituições europeias.
Não estão em causa os magistrados envolvidos em todo o processo, nem se efetuam neste comunicado juízos de valor sobre as suas competências e qualidades profissionais. Está aqui em causa, única e exclusivamente, a intervenção do Ministério da Justiça, cuja atuação descredibilizou a própria Magistratura do Ministério Público e a Justiça.
Se o Executivo quisesse preservar a independência da investigação criminal seria indiferente à escolha do magistrado e não teria interferido da forma como o fez. Foi isso que fez a generalidade dos países europeus! Estes confiaram na graduação do comité de especialistas! Muito menos apresentaram um documento com factos falsos para enaltecer as qualidades profissionais de um dos candidatos! A Senhora Ministra da Justiça admitiu no Parlamento que teve intervenção na elaboração do documento, o qual contém factos falsos.
A responsabilidade de erros no documento não é só dos serviços, mas também é sua.
Dificilmente se compreende que num assunto da mais alta relevância para o Estado Português, a Senhora Ministra da Justiça não tenha acompanhado detalhadamente todo o processo de elaboração e revisão do documento, o que a ter acontecido configura um comportamento negligente da sua parte.
O que resulta evidente em todo este processo é a falta de transparência no procedimento de escolha.
Passados vários meses desde que este assunto começou a ser discutido publicamente, ainda não foram esclarecidos todos os factos. Como é possível defender a transparência como um dos principais eixos da estatégia nacional contra a corrupção, quando se vê em todo este processo que o que impera é a opacidade e a ocultação?
A direcção do SMMP repudia toda a forma como foi conduzido, pelo Governo, o processo de nomeação do Procurador Europeu Português. Como é que no futuro algum magistrado se irá candidatar a este cargo, quando já se sabe que a escolha depende do Governo? É uma farsa criar um longo processo, com sucessivas entrevistas e análise curricular em diversas instâncias que dá a impressão que a escolha assenta no mérito e em critérios objectivos, quando se viu que o critério decisivo é a preferência do Governo.
Face ao que aconteceu, o Governo tem de dar sinais claros que pretende defender a investigação criminal.
É imperioso que o Ministério da Justiça esclareça cabalmente todos ao factos referentes ao processo de nomeação do Procurador Europeu português, o que ainda não sucedeu até à presente data. É essencial que seja mudado o regime legal de nomeação do membro português na Eurojust, passando tal escolha a ser efectuada pelo Conselho Superior do Ministério Público. É igualmente importante que o Governo Português assuma publicamente o compromisso de aceitar no futuro o resultado de graduação dos candidatos pelo comité de selecção do Procurador Europeu.
O Governo tem de clarificar qual o caminho que quer seguir, se quer uma investigação criminal autonóma ou controlada pelo poder executivo.
Impõe-se que as grandes proclamações tenham correspondência no plano prático.
É tempo de acabar com estas situações que minam a confiança do cidadão na Justiça!
10 de Janeiro de 2021
A Direção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público