Colegas!

1. Assistimos a uma homenagem a dois homens, a dois magistrados, que, sem medo, com rara iniciativa e muita imaginação e alegria deram corpo ao que é hoje o SMMP.

Dar corpo a uma organização como o SMMP significou – significa ainda – levantar o núcleo central de ideias e princípios que estiveram na base da agregação de todos os que a vieram a integrar.

Por causa desses princípios o pensamento de Artur Maurício e Rodrigues Maximiano não pode deixar de ser nosso contemporâneo.

Contemporâneo nas preocupações que estiveram na sua origem e nas ideias e soluções que encontraram para a sua resolução.

A contemporaneidade desse pensamento não é, no entanto, como alguns poderão pensar, sinónimo da sua concordância com o pensamento actual.

Ele é nosso contemporâneo na medida em que, tendo recolhido e interpretado a experiência do passado e as preocupações então existentes, foi capaz de, através e por causa delas, projectar para o futuro soluções novas capazes de permitir ultrapassar uma realidade que foi e voltou, hoje, a ser nossa.

Ele serve, assim, ainda agora, de arma crítica contra o pensamento actual e a sua pobre e limitada circunstância.

Por isso, esta homenagem não deve, no essencial, ser lida apenas como uma recordação de um passado glorioso e feliz, mas como um momento de reflexão sobre e a partir do pensamento vivo de dois homens, um pensamento que, por contemporâneo, é capaz de, no presente, continuar a agir subversivamente sobre a nossa actualidade e o nosso futuro imediato.

Daí a sua contemporaneidade.

Por isso, esta homenagem significa, mais do que recordar, viver o seu pensamento hoje, aqui e tem em vista, sobretudo, poder continuar a concretizar, agora e depois, os princípios porque ambos se bateram.

Princípios de autonomia, de independência, de objectividade, de imparcialidade e de igualdade na acção da Justiça e do Ministério Público.

Princípios que, como ambos inúmeras vezes referiram, para viverem e poderem ser vividos na prática da Justiça, necessitam integrar as garantias que a constituição judiciária quis assegurar a todos os magistrados e, designadamente, aos do Ministério Público.

Apreender os seus pensamentos e ensinamentos significa, assim, actualmente, continuar a contar com eles – com Artur Maurício e Rodrigues Maximiano – aqui e agora.

Por isso, só puderam homenageá-los com verdade os que ainda hoje acreditam e querem concretizar, de facto, esses princípios.

2. As conferências proferidas pelos ilustres professores que nos honraram com sua presença e saber constituíram, também, um marco importante e novo na reflexão que nos propomos levar a cargo neste Congresso.

O que ouvimos, e muito do que ouvimos foi dito de uma forma directa, inovadora e profunda que ultrapassou tudo o que até hoje foi afirmado e escrito entre nós sobre o Ministério Público e a relação da sua orgânica com os princípios constitucionais do Estatuto e do Processo Penal.

Compreendemos que uma coisa é o normal funcionamento de uma hierarquia específica, que se adequa à autonomia de uma magistratura e conta com os seus instrumentos objectivos, transparentes e responsabilizantes de direcção: as ordens, as instruções e as directivas, dadas e assinadas por quem de direito.

Um modelo que, além do mais, acolhe já instrumentos de flexibilidade na gestão de processos e magistrados, desde que exercidos de forma assumida, transparente e fundamentada e adoptados por quem tem verdadeira e prefixada competência estatutária para tal. É o modelo que temos tido.

Outro, é um modelo de clara subversão do paradigma constitucional, estatutário e processual penal. É um modelo que se exerce no segredo, por via da confiança pessoal, com determinações não escritas nem controláveis pelas partes e pelos cidadãos e se baseia, essencialmente, na gestão condicionada das carreiras dos magistrados.

É um modelo que prescinde da autonomia interna e das regras objectivas e pré-determinadas de organização departamental e de distribuição dos processos. É um modelo que se abstrai dos deveres de objectividade, da garantia de preservação da consciência jurídica dos magistrados e que cedo conduzirá à deslegitimação das competências e da acção do Ministério Público e colocará em crise constitucional e processual muitas dos actos e das investigações levadas a cabo por esta magistratura.

O que ouvimos, as inquietações com que ficámos, indicam-nos que não podemos mais ficar quietos enquanto os pilares de uma Justiça democrática são sistematicamente desmontados e substituídos por hologramas dos princípios e modelos de organização judiciária que a Constituição da democracia instituiu.

Saber encontrar os pontos essenciais que hão-de constituir desde já a barreira intransponível, o foco da nossa atenção e o objectivo da nossa acção é, pois, o trabalho que nos compete neste momento.

3. Uma reflexão, contudo, se nos impõe em jeito de autocrítica: andámos tanto tempo preocupados com as condicionantes externas da nossa autonomia que não cuidámos, antes, suficientemente, de erguer uma prática e um corpo doutrinal capazes de assegurar, a nível interno, as garantias estatutárias que a Constituição previu para o Ministério Público.

Confiantes numa unidade de ilusória, alimentada apenas na ideia ingénua de que uma pertença de todos à magistratura era caução suficiente e significava sempre a adesão incondicional de todos ao modelo constitucional, olvidámos diferenças essenciais, os pequenos e grandes interesses e as contradições que eles geram e, distraídos, deixámos enraizar longo dos tempos práticas pouco exigentes, erradas e perigosas.

Práticas que, depois, se transformaram em vícios, que antes mesmo de se tornarem malignos, eram já sintomas de perversão e de pouco apego aos direitos e garantias que a Constituição nos outorgou com um único fito: o de que defendêssemos os direitos, a liberdade e a igualdade dos outros cidadãos.

Preocupados, em certos casos, talvez em demasia, com a aparência da autonomia do Ministério Público – portanto com a sua autonomia externa – permitimos que, paulatinamente, crescessem no seio da nossa orgânica ervas daninhas que transportavam já o desprezo pelas garantias da autonomia interna e as salvaguardas da consciência jurídica, da objectividade e da imparcialidade que devem ser exigidas a todos e cada um dos magistrados; salvaguardas sem as quais a autonomia externa se pode transformar numa insinuante, mas afinal perigosa armadilha para a democracia e o estado de direito.

Não é que alguma vez tivéssemos descurado a luta pela consagração legal e regulamentar dessas garantias. A história dos nossos congressos, os seus documentos, as alterações constitucionais e legislativas que deles derivaram provam o contrário.

O erro não foi, de facto, esse.

Foi antes o de, na realidade, na prática, não termos nunca levado totalmente a sério o princípios e as normas que os consagravam.

Por conservadorismo de uns, por autoritarismo atávico de outros, por comodismo e pragmatismo inconsequentes de quase todos, deixámos erodir os princípios e instalar paulatinamente um oportunismo cínico e manipulador que hoje envenena a nossa condição de magistrados e pode destruir a sua autonomia.

4. Em consequência, são hoje a lei e o Estatuto, que julgávamos sólidos, que se amoldaram e tornaram fluidos, permitindo agora – se não o impedirmos já – que se consagre a tal prática perversa, a que, por demasiado tempo, fechámos os olhos.

Por certo em piores condições, cabe-nos, por isso, actualmente – a nós magistrados e aos membros do CSMP – reinventar uma regra e uma prática que, voltando aos princípios essenciais, assegure o exercício normal e quotidiano das garantias da constituição judiciária e permita, assim, a transformação radical do Ministério Público num verdadeiro corpo de magistrados encarregado de fazer respeitar a lei e os direitos constitucionais: os dos cidadãos e os próprios.

É que só quem tem como prática quotidiana no domínio interno a afirmação persistente e rigorosa dos direitos e garantias próprias está em condições de compreender e assegurar os direitos e garantias dos outros.

Parece, com efeito, esquizofrenia, e não é sequer curial do ponto de vista democrático, aceitar como necessária uma realidade de desrespeito de direitos e garantias no seio da magistratura – no fundo, um interregno do Direito – para pretender, alegadamente, que esta se situe em melhor posição para defender, com eficácia, os direitos e garantias alheios.

Nesse sentido talvez que a crise que vivemos no seio do Ministério Público e a nossa luta actual, pelo que significam de alerta e tomada de consciência colectiva, acabem por ser virtuosas.

5. A eficácia de uma magistratura moderna não se pode basear em critérios tutoriais, de apadrinhamento, de subordinação e fidelidade pessoal.

Esses critérios escondem, em regra, perigosos e muito nocivos vícios para a prática de uma Justiça baseada nos valores constitucionais da igualdade de todos perante a lei, na objectividade do exercício do despacho judicial e na imparcialidade da acção da Justiça.

A eficácia que pretendemos tem de ser, pois, outra.

Ela tem de basear-se nos princípios republicanos de transparência e objectividade na escolha dos melhores e mais conhecedores para os lugares de maior responsabilidade.

Ela tem de basear-se na especialização e no acesso de todos – e não apenas de um núcleo de escolhidos – à formação permanente e contínua. Uma formação que há-de, ela própria, constituir um pressuposto e permitir a preparação prévia e indispensável a uma verdadeira especialização.

Ela há-de basear-se na definição de critérios e factores tão objectivos, simples e eficazes quanto possível para classificar os magistrados. Factores sérios que, por isso, são controláveis por todos – controladores e controlados – e assim são fautores de estabilização, dinamismo e cooperação interna.

Ela há-de basear-se numa remuneração justa das diferentes obrigações e responsabilidades que os magistrados voluntariamente quiseram assumir e também no prémio razoável daqueles que, fazendo bem e dedicadamente o seu serviço, continuam, ao longo dos anos, a assegurar as suas funções em lugares de menos destaque, mas de grande envolvimento profissional e afectivo para com os cidadãos dos lugares mais distantes e menos progressivos do nosso País.

Ela há-de basear-se na garantia de que os magistrados não podem ser movidos a não ser em função da sua vontade e nos temos dos critérios previamente definidos na lei.

A eficácia que queremos e podemos alcançar tem, por isso, de estribar-se, sempre, numa real igualdade de oportunidades de todos os magistrados no que respeita à construção de uma carreira; uma carreira regida por critérios objectivos e controláveis, interna e externamente, pela acção de um Conselho Superior que a Constituição quis, em consequência, que integrasse elementos endógenos e exógenos à magistratura.

Tal carreira, não pode, assim, vir a passar, apenas ou privilegiadamente, por cooptações e catapultagens daqueles que, melhor ou mais insistentemente, se sabem perfilar e se insinuam junto dos diferentes poderes e interesses.

Uma tal eficácia há-de assentar, além disso, numa gestão moderna e rigorosa de recursos humanos e na rejeição definitiva de práticas arcaicas e ideias ultramontanas de apadrinhamento e sujeição; prática que, afinal, têm sido a grande responsável por alguns dos piores insucessos que o Ministério Público tem obtido e que todos, alegadamente, afirmam, combater.

Práticas que, em geral, têm corrompido a nossa democracia e que estão associadas, directa ou indirectamente, à profunda crise política, económica, social e moral que ela vive, bem como, em consequência, a alguns dos mais importantes processos que o Ministério Público tem hoje de investigar.

Práticas que, por isso, são definitivamente incompatíveis com algo que se pareça com a gestão de uma magistratura de uma República moderna, de uma Democracia europeia, a quem a Constituição Portuguesa atribuiu, baseada na sua autonomia e independência, o poder de conduzir livremente e com objectividade as investigações penais.

A eficácia que queremos só pode, por isso, ser filha dilecta e não enjeitada, dos princípios e garantias constitucionais.

6. Tomar e levar quotidianamente a sério os direitos e garantias da constituição judiciária há-de ser, por isso, o verdadeiro móbil deste Congresso; o móbil que, a partir de agora, há-de orientar esta e as futuras estruturas do SMMP e que terá de ser o próprio fermento de transformação do Ministério Público.

As teses que aqui vos apresentámos pretendem, assim, apenas, ser um ponto de partida para uma discussão que se quer ampla, livre e também ela eficaz para a concretização do nosso estatuto constitucional.

Um Estatuto pensado, tão só, na perspectiva de assegurar a todos os cidadãos que os magistrados que estão encarregados dos seus processos não foram escolhidos por quaisquer outros motivos que não os da sua competência técnica e valor moral.

Um Estatuto que pretende, também, assegurar a esses magistrados que podem desenvolver a sua função sem estarem sujeitos a qualquer pressão ilegítima, seja ela externa ou interna.

É este, hoje, por causa dos direitos que a Constituição nos incumbiu de defender e dos cidadãos que nos confiam os processos, o nosso principal dever cívico e político. Estas teses são a prova de que tentaremos, sem desfalecimento e por todos os meios legais – e eles ainda são bastantes e eficazesatingir os objectivos que nelas são definidos.

Tomemos, pois, a sério a constituição judiciária e os seus princípios e, mobilizando-nos, ajudemos, desde já, a construir no seio do organismo de governo próprio do Ministério Público – o CSMP – normas capazes de asseverar aos portugueses que os magistrados deste País têm condições objectivas e subjectivas para, com eficácia, aplicarem a lei sem outras restrições e preocupações que não as da busca incessante da igualdade, imparcialidade e objectividade.

Colegas!

Vivemos hoje – todos o sabemos – num mundo de egoísmos, de pouca fé nos homens e no bem comum, um mundo que facilita a acomodação e a pouca exigência moral e ética.

Sejamos, no entanto e por uma vez, intransigentes.

Em matéria de respeito pelas garantias constitucionais, podemos, no limite, aceitar soluções menos boas, mas devemos recusar sempre, mas sempre, as soluções menos más.

Pl’a Direcção
António Cluny

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