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Xenofobia sobre alunos brasileiros investigada na Universidade do Porto

Ministério Público recebeu queixa da Reitoria sobre crimes de discriminação Há denúncias de notas diminuídas em testes feitos em português do Brasil

P.10 e 11

Discriminação, xenofobia e racismo investigados na academia do Porto

José Miguel Gaspar gaspar@jn.pt

Ministério Público recebeu queixa em outubro sobre ataques a alunos brasileiros. Reitor da UP condena “crimes lamentáveis”. Grupo Quarentena Académica acolheu mais de 100 denúncias

INVESTIGAÇÃO Em 10 de outubro, a página anónima na rede social Instagram “Apanhei covid na FEUP” publicou uma foto que foi o pináculo da indignação. A foto exibia o campus da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto com oito bonecos: um, ao centro a pairar, era o símbolo radial do coronavírus; os outros sete eram macacos e estavam em pose de reinação. A legenda dizia: “Sobre os ajuntamentos de brasileiros na FEUP”.

Quinze dias depois, surge outra página na mesma rede social, também anónima, agora alargada ao Twitter, com potencial ofensivo pior. Denominada “Confissões FEUP”, convidava à cumplicidade: “Junta-te à nossa comunidade e confessa-te”. As dezenas de “confissões”, publicadas sob anonimato, tinham em comum um caráter insultuoso, hostil e boçal e incorriam em vários crimes: racismo, xenofobia, sexismo, machismo, difamação e outras formas de discriminação. Novamente, a comunidade brasileira, a maior entre os 20% de alunos estrangeiros da academia do Porto (num universo total de 32 mil alunos), era o alvo do ataque central.

Os episódios, mediados pela repulsa geral dos estudantes que criaram nas redes sociais uma onda virai de condenação, causaram uma ação quase inédita da Reitoria da Universidade do Porto (UP): compilou os factos infames, abriu um inquérito interno e, a 30 de outubro, participou os crimes ao Ministério Público, órgão competente para exercer a ação penal. “Os factos em referência

são objeto de investigação pelo Ministério Público do DIAP [Departamento de Investigação e Ação Penal] do Porto”, confirmou ao JN fonte oficial.

“São crimes públicos lamentáveis”, que “condenamos com veemência, sem cabimento na academia”, diz António Sousa Pereira, desde 2018 reitor da UP. O assunto “é grave” e “terá de ter consequências”.

O diretor da FEUP, João Falcão e Cunha, e o presidente da Associação de Estudantes, José Araújo, emitiram uma nota breve com “condenação veemente” e “repúdio inequívoco” das “mensagens anónimas, que refletem atitudes pouco escrupulosas ou inconscientes” e “estão a afetar negativamente a imagem da FEUP”.

“É PRECISO MAIS”

“Ainda é pouco, é preciso fazer mais”, dizem dois alunos da Quarentena Académica, grupo estudantil criado em março que já recebeu “mais de 100 queixas de estudantes estrangeiros” – destacando-se a “discriminação institucional”.

“Os canais tradicionais não resolveram o assunto, o problema é estrutural e a reitoria mexeu-se, finalmente, porque o caso era demasiado visível”, diz Ana Isabel Silva. “A Reitoria atuou por pressão dos estudantes e pelo medo de ver manchada a imagem da faculdade”, conclui Tomás Nery. •

Professores diminuem notas a quem escrever em brasileiro

Xenofobia Alunos do Brasil revelam prática danosa: já há mais de 100 denúncias desde março. Sindicato dos docentes desvaloriza: “Não há queixas oficiais”

José Miguel Gaspar

gaspar@jn.pt

denúncias “És burrinha,

né?”-ea partir daí, ela que já erguera o braço três vezes, não teve coragem de tirar

mais dúvidas, nem naquela aula, nem nas seguintese no resto do semestre habituou

-se a ficar encolhida.

Foi humilhante, o professor insultou o país dela, o povo, a língua, insultou-a a ela e fez bullying numa forma de xenofobia linguística com ameaça de prejuízo real:”E se não escreveres emportuguêsde Portugal, porque a língua que vocês falamlá no Brasil é errada, ainda te chumbo, é certinho porque tu és burrinha, né?”. Mas o pior não foi isso, diz a aluna, foi o ambiente em que tudo ocorreu, muita gente se riu, atiraram-lhe piadinhas e risinhos e, no final, como se fosse tudo normal, ninguém pediu desculpa, ninguémfalou com ela, ninguémse desdisse. E, por isso, fez queixa da situação.A alunabrasileira chegou este ano letivo à Universidade do Porto e faz parte da avalancha: éumdos 595 novos alunos estrangeiros da academia, que tem

mais de seis mil estudantes de 60 países entre os 32 mil

totais. No país todo, o número de alunos estrangeiros de grau bateu, também, um novo recorde: entraram em 2020 mais 5477 (+38% num ano),háagora58 092 estrangeiros nas universidades

portuguesas, o maior volume de sempre -e mais de metade são brasileiros.

O MALÉ GERAL Os alunos do Brasil são a imensa maioria entre os mais de 100 casos que, desde março, foram denunciados à QuarentenaAcadémica, grupo ativista estudantil criado na pandemia e que se vê a braços com queixas de xenofobia, racismo, sexismo e modos de diminuição cultural que, mostram, são prática contínua nas academias contra os brasileiros. Nos casos consultados pelo JN, sobressai a queixade perda direta de valores em testes escritos em brasileiro

uma aluna de Psicologia da Universidade de Lisboa revelou mesmo: “Fiz 0 exame junto com meu namorado e as respostas eram iguais, mas ele, que é português, obteve 15 valores e eu, que sou brasileira, 12”.

As denúncias atravessamo país: há queixas em Letras e Históriano Porto, Psicologia em Lisboae no Porto, Enfermagem, Médicas, Línguas e ComunicaçãoemAveiro,casos nos politécnicos, em Coimbra, na Universidade do Minho, na FEUP, que é um cúmulo da situação e está a ser investigada pelo Ministério Publico. Todas as queixas batem aqui: a recriminação comportamental

dos professores – ou não travam afrontas dos alunos ou ativam eles a discriminação.

“ALGOTEMDEMUDAR”

“Há professores sem preparação pedagógica para a distinção cultural brasileira, com preconceitos contra a língua, o país, a raça, a ignorar, em prejuízo, 0 Acordo Ortográfico”, diz Ana Isabel Silva, doutoranda de Biologia Molecular no ICBAS da UP e que integra o grupo da Quarentena com 20 fundadores atentos nas universidades do país. “Sou portuguesa, senti vergonha, decidi agir”. Aponta “a paralisia institucional perante as queixas”ea “revolta de ver que 0 problemaé estrutural: a Reitoria contribui para

esse bloqueio – as queixas nunca deram em nada”.

“Algo tem de mudar, os alunos brasileiros não reveem nas vossas academias o país acolhedor, inclusivo, diverso, o país europeu

avançado que anunciam”, avisa Anabelly Pontes, brasileirano mestrado de Ciência Política em Aveiro e que recolhe denúncias no Grupo de Estudantes Estrangeiros. “Vejo alunos com problemas psicológicos, outros a desistir, vejo microagressões quotidianas. E vejo muitos docentes e não docentes muito mal preparados para lidar com tantos alunos estrangeiros”.

“Há xenofobia institucionalizada, enraizada”, acusa outro aluno brasileiro ouvido pelo JN no Porto, “são os preços mais caros para os estudantes estrangeiros, propinas, alojamentos, serviços, separação de dormitórios e cozinhas, desapoiosocial e tantas formas em que me sinto agredido por ser e falar brasileiro”. Aplaude a investigação do Ministério

Público ao caso da FEUP. E ri: “É bom, se fosse a Reitoria não acontecia nada”.

“HÁDETUDO”, DIZREITOR O reitor António Sousa Pereira defende a academia, relembra os fóruns para denunciar estes casos, provedordo Estudante, Conselho Pedagógico, consultas de psicologia, associações de estudantes- órgãos que os alunos dizemnão ser sedespróprias para estas questões -,

aponta0 Tratado de Igualdades e Deveres, recorda a mensagem de valores que distribuiuà comunidadeem outubro, mas não anunciou

ações ou mudanças concretas, para lá de ter pedido “mais vigilância” online ao seu Gabinete de Imagem. Dos professores, o reitor admite: “Há comportamentos menos próprios, temos aqui de tudo, mas acredito que os exemplos menos bons não são a regra, são a exceção”.

O assunto passa ao lado do SNESUP, sindicato do Ensino Superior que representa

os professores.A novapresidente, Mariana Gaio Alves, diz que “não há queixas oficiais”, que”em 20 anos como professora nunca ouvi queixas dessas”e que “os casos serão residuais”.E não concorda, “de todo, que o’ corpo docente esteja mal preparado para lidar com os alunos estrangeiros”. •

—ENTREVISTA— “Bocas”

podem ser “micro-agressões”

Juliana

Iorio

Doutora em Geografia Humana

Conhece casos de discriminação de estrangeiros nas universidades portuguesas? Na qualidade de doutora em Migrações, nas investigações que desenvolvo com os estudantes internacionais no Ensino Superior português, sobretudo com brasileiros, posso dizer que, nos relatos de alguns estudantes, parece haver comportamentos discriminatórios

da parte de alguns professores.

Os docentes estão preparados paratantosestrangeiros?

As universidades devem preparar melhor os seus professores para a diversidade de alunos que recebem. Devem conhecer a cultura eo ensino dos países de origem dos estudantes; só conhecendo realidades diferentes é que conseguirão entender comportamentos diferentes. Aceitar as diferenças, e ver nisso uma mais-valia para 0 ensino português, pode ser 0 começo para diminuir discriminações nas aulas.

Tem exemplos de discriminação dos professores?

Quandoum professor não aceita, nas aulas, que um estudante brasileiro fale 0 português do Brasil é uma forma de discriminação. Quando faculdades não aceitam trabalhos escritos no português escrito no Brasil, é, sim, discriminação- até porque aceitam o inglês…

O que são”microagressões”? Tanto professores comoalunos, através de “brincadeiras” ou “bocas”, podem manifestar microagressões, como comentários desagradáveis, falta de sensibilidadepara com o outro, não reconhecer que o outro tem sentimentos, são microagressões subtis e que escondem discriminações mais amplas e enraizadas. É óbvio: existe discriminação em Portugal. •

Página anónima no Instagram: brasileiros são macacos

1 Aluno brasileiro: “Há xenofobia institucional”na UP 2 Anabelly Pontes, brasileira em Aveiro, do Grupo de Estudantes Estrangeiros 3- Tiago Tomás e Ana Isabel Silva, do grupo ativista QuarentenaAcadémica

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