Quando o Estado falta ao seu dever de ter leis com princípio, meio e fim
Há leis que obrigam à publicação de outras normas que nunca saem da gaveta, criando Vazios do Estado’. Uma,
Há quase seis anos que muitos portugueses se cruzam na estrada com sinais de trânsito, como a ilustração desta página, sem qualquer valor legal. Tudo porque o Regulamento de Sinalização de Trânsito (RST), que devia ter sido publicado nos finais de 2013, 90 dias depois do novo Código da Estrada, ainda desconhece a luz do dia. A continuação deste ‘vazio do Estado’ está por um fio — há uma semana, o Conselho de Ministros aprovou a “alteração” ao RST —, mas ainda falta a publicação em “Diário da República”.
Por causa desse atraso, a dezena de sinais então criados, para adequar às novas normas desse Código (e que foram entretanto plantados em ruas e estradas por autorrecriação de algumas autarquias), têm sido meras figuras ornamentais. Se alguém os desrespeitar não pode ser autuado. Para os sinais anteriores aplica-se o RST em vigor, de 1998, o qual naturalmente não cobre as realidades surgidas há seis anos.
Vazio diferente, porque mais recente e com implicações de outro tipo, é o sistema de Planeamento Civil de Emergência. Trocando por miúdos: a resposta que o Estado devia ter definida previamente para situações como a da crise energética que marcou o início de agosto. Duarte Caldeira, presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Proteção Civil, tem uma opinião crítica do sucedido há pouco mais de um mês: “Tratou-se de um quadro doutrinário típico do designado Planeamento Civil de Emergência.”
O problema, explica este especialista no sector (e que entre outras coisas é coordenador do curso de extensão universitária em Emergência e Proteção Civil da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa), é que o referido sistema de Planeamento Civil “formalmente não existe, não havendo por isso também nenhuma política específica que o oriente”.
Pode parecer confuso, mas uma visita guiada de Caldeira ao emaranhado legal é uma boa sinalização do percurso. O ponto de partida é um decreto-lei de 1 de abril, que aprova a orgânica da agora chamada Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC). Segundo este diploma, o sistema nacional de Planeamento Civil de Emergência devia ter ganho forma legal em 90 dias. O que não aconteceu, pelo que no início de agosto, quando ocorreu a greve de motoristas de matérias perigosas, o documento estava em falta.
Neste contexto, diz Duarte Caldeira, “ainda não se sabe o que é” o Planeamento Civil de Emergência, “nem como vai funcionar” — apesar de já ter sido movimentado no terreno, como se viu em agosto. “Logo, a declaração de crise energética [e da situação de alerta] deu para tudo”, diz Caldeira. “Num Estado de direito, não basta criar leis de conveniência. E preciso também conferir-lhes legitimidade sistémica”, salienta.
O Ministério da Administração Interna (MAI) tem opinião diferente. Salientando que o diploma está em “processo legislativo”, afirma que “a materia e a articulação das diversas entidades e serviços, públicos e privados, que desempenhem missões relacionadas com o Planeamento Civil de Emergência já integra as competências da ANEPC”. E esta, sublinha o MAI, “assegura as atividades de Planeamento Civil de Emergência para fazer face, por exemplo, a situações como a da crise energética”.
Pedro Costa Gonçalves, especialista em Direito Administrativo e professor da Universidade de Coimbra, explica que a questão dos “vazios do Estado” tem “várias dimensões”. Em ambos os casos mencionados ocorre uma “omissão regulamentar”.
Situações dessa natureza genérica só podem ser dirimidas pelos tribunais (por iniciativa do Ministério Público ou de lesados por uma omissão), explica. O caminho é apertado: “E preciso demonstrar que o regulamento é legalmente obrigatório (imposto pela lei que visa regulamentar) e que deve ser emitido num certo prazo.”
O caso mais impactante de um “vazio” deveu-se à morte de duas crianças em Lisboa, em 1993, no Aquaparque. Os menores foram sugados por tubagens do parque de diversões aquático, às quais faltavam grelhas nos ralos. Fonte oficial da Provedoria de Justiça recorda ao Expresso que “faltava legislação sobre regulamentação das condições de segurança nos parques aquáticos e recomendou- -se a sua emissão, o que acabou por acontecer, após duas recomendações da Provedoria”. Um acordo celebrado mais tarde entre as famílias e o Ministério da Justiça levou aquelas a desistir de uma ação cível contra o Estado, que aceitou pagar uma indemnização. A falha dos poderes públicos foi atestada noutra dimensão, como salienta Pedro Costa Gonçalves, ao evocar, no mesmo processo, a “importante e histórica condenação do Estado” pelos tribunais judiciais.
Outra situação com um desfecho trágico é lembrada pelo mesmo jurista e docente universitário, no seu “Ensaio sobre a figura da inação administrativa oficiosa” (um artigo científico publicado há dois anos, em obra coletiva). Trata-se de um caso que chegou em 2016 ao Supremo Tribunal de Justiça. Este manteve no essencial uma condenação ao Instituto da Segurança Social, obrigado ao pagamento de uma indemnização pela morte de idosos, num incêndio no lar em que residiam, tutelado pelo instituto. Em poucas palavras, uma
entidade do Estado devia ter encerrado um lar, por falta de condições de segurança. Não o fez e morreram pessoas. Uma “tragédia da inação”, escreve Costa Gonçalves.
Alguns vazios do Estado vão mais acima e chegam ao Tribunal Constitucional (TC). Por regra, após intervenção da Provedoria, o TC aprecia a alegada existência de omissão legislativa (neste caso são leis, não simples regulamentos). No total de oito acórdãos que constam do arquivo do Tribunal, em metade dos casos os conselheiros consideraram haver omissão legislativa (e declararam a inconstitucionalidade de leis).
“Fora do quadro muito apertado da inconstitucionalidade por omissão, não há nenhuma forma de obrigar os órgãos competentes a legislar (Assembleia da República ou Governo), nem o Parlamento pode obrigar o Governo a legislar”, diz Pedro Costa Gonçalves.
Uma circunstância que não afeta, contudo, o cerne da questão, hoje um problema bem real, segundo o especialista: “A inação dos poderes públicos é, seguramente, um dos mais relevantes problemas do Estado de direito no século XXI”.