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A Europa é aqui

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Orgulho e preconceito

Orgulho e preconceito

O Porto na posição de “atacante”

Na suposta batalha campal entre as duas cidades, o ódio perde para as cumplicidades.

Mergulho na história de uma rivalidade secular.

Entre diversidade e ideias feitas, política e centralismo, futebóis e fanatismos. Vistos de perto, somos todos iguais?

Cristiana Faria Moreira e Mariana Correia Pinto

O convite vestiu-se de gala, sedutor como a capital, e inebriou-lhe o pensamento.

Helder Pacheco voltava de uma viagem à Irlanda do Norte e matutava nos caixotes a encherem-se na sua casa portuense e no arrendamento de um apartamento em Lisboa já apalavrado. À medida que o voo se aproximava de terra, ganhava angústia e perdia certezas: “Às tantas pensei para mim: ‘Deves estar maluco!'” E então, quando aterrou, ligou a quem lhe tinha feito o convite pro?ssional e comunicou ter mudado de ideias: não trocaria o Porto por Lisboa.

O historiador conta o episódio para falar da única vez em que esteve perto de se “perder”. O bilhete de identidade marcava a idade na casa dos trintas, corria o ano de 1973, e a ponderação do futuro tendia a minorar raízes sentimentais. “O poder corrompe”, graceja. Aos 82 anos, e com quase cinco dezenas de livros sobre o Porto publicados, sabe ter tomado a decisão certa. Fez-se um defensor acérrimo da sua cidade e diz gostar cada vez mais dela. Mas se o assunto são as alegadas peleias com a capital, Helder Pacheco muda o tom e deixa de lado provocações inofensivas. Se há uma batalha entre Porto e Lisboa, diz, ela tem um epicentro e um réu e nada tem que ver com os povos das duas cidades. “Chama-se Terreiro do Paço”, a casa de sucessivos governos, morada da criação de “antagonismos” que contaminaram diversos sectores da sociedade, feitos “centralistas e imperialistas por osmose”.

Nesse pretérito que nunca deixou de ser presente – o crescimento de um país desigual – estarão algumas das explicações para a forma como as cidades se (des)entendem. Mas, feitas as contas – entre diferenças e diversidades, costumes e sotaques, ideias feitas e preconceitos, falsas superioridades e provincianismos, futebóis e fanatismos -, resiste apenas uma pátria. De perto, a?nal, somos todos iguais. Ou não?

As primeiras memórias de Paulo M. Morais não são as mais idílicas. Nascido em Lisboa, com casa em Algés, fez das viagens ao Porto percurso frequente quando os pais se divorciaram e o progenitor encontrou emprego a norte. Era ainda adolescente e reteve a lembrança de um município “mais fechado” do que a seu. “Percebiam o meu sotaque e sentia-me muitas vezes gozado”, recorda. O escritor justi?ca a atitude com “um certo con?ito”, em alta à época, alimentado pelo futebol.

“Nunca me sentia totalmente à vontade e achava aquele con?ito um bocadinho tonto.”

O tema nunca lhe roubou, porém, horas de sono. As raízes de Paulo M. Morais eram profundas e nunca cogitara sair de Lisboa – nem para o Porto nem para qualquer outra cidade.

Mas depois o amor aconteceu. E das certezas iniciais nasceram novas convicções. “Quando conheci a Isabel Rio Novo, houve uma paixão muito grande e percebemos rapidamente que queríamos um futuro em comum.”

Ela, escritora também, era natural do Porto e tinha no distrito um emprego ?xo. Ele, alfacinha, trabalhava como freelancer. Feito o estudo, a balança tendeu para norte: seria mais lógico ser Paulo a mudar-se. “Não me arrependo da mudança e aprendi a gostar de muitas coisas cá.”

O vaivém entre os dois burgos acontece desde sempre. Com mais ou menos sucesso. Por amor, para agarrar um emprego, para estudar, pela simples mudança. Não há números desse mercado de transferência, mas a percepção dominante – muito por causa da oferta de trabalho – é a da existência de um movimento descendente no mapa.

Quando há 20 anos Teresa Uva foi trabalhar para uma empresa de publicidade na capital, os colegas foram espreitar pelos biombos de vidro que separavam as secretárias “a menina que tinha chegado do Porto”. Com 45 anos, nascida e criada em Paranhos, no Porto, a jovem mudou-se porque queria “crescer” no mercado publicitário. E era ali, na capital, que estavam as grandes empresas. A cidade não lhe era estranha. As visitas eram recorrentes porque os “grandes concertos” das bandas da sua juventude aconteciam na capital.

A Lisboa que Teresa tinha na cabeça há duas décadas era uma cidade onde tudo era distante: os locais uns dos outros, as pessoas umas das outras, “mais despreocupadas em relação ao outro”. Diz que não a mantém, mas não a abandona por completo. “Generalizando, obviamente.”

Os seis meses que Teresa ia passar em Lisboa já vão em 20 anos. Deixou a publicidade e trabalha hoje num negócio que organiza passeios pelo país em bicicletas eléctricas. Lisboa tornou-se casa. Casou-se, teve ?lhos.

A vida mudou-se completamente para a capital, ainda que de lá de cima ?quem as saudades da infância e da adolescência, do irmão e das cunhadas, dos sobrinhos.

Às vezes, falta-lhe o “calor” com que a tratam a norte. “Ainda hoje vou ao Porto, entro num café e a maneira como me tratam é completamente diferente.” Aqui em Lisboa, “anda tudo mais apressado”. “As pessoas estão tão habituadas ao entra e sai de gente que se, de repente, alguém desaparecer já não ligam muito.” Esta distância dos lisboetas “não é uma percepção errada, acredita, ainda que possa ser “exagerada”.

Lisboa habituou-se a ser geogra?a não só dos lisboetas, mas de todos quantos ali passam. A história de Fernando Medina é “a mais lisboeta possível”. Nasceu em 1973 e cresceu na freguesia do Aldoar, próxima à foz do Douro. É o portuense mais conhecido de Lisboa, ainda que muitos não lhe saibam a origem, talvez porque o sotaque pouco o denuncia. Deixou o Porto há 20 anos, quando terminou o curso de Economia na Universidade do Porto. Procurou emprego e encontrou-o em Lisboa. Acabou por ?car.

Iniciou a carreira política, casou-se, nasceram-lhe os ?lhos, tornou-se presidente da Câmara de Lisboa.

Quando António Costa, à data presidente da autarquia, o convidou para número dois da lista, Medina perguntou-lhe: “mas tu sabes que sou do Porto?”. Costa ter-lhe-á respondido que depressa perceberia que isso de ser um portuense em Lisboa não teria importância nenhuma porque aqui “toda a gente é de outra terra”.

Medina acredita que o “discurso de rivalidade” que o Porto aponta muitas vezes à capital, não tem como alvo a cidade nem as suas gentes, mas Lisboa como centro de poder.

E, por isso mesmo, a própria capital é também “uma grande vítima do centralismo”.

E talvez tenha sido isso o que mais o surpreendeu quando chegou a Lisboa: não havia a outra face da moeda em relação ao que ouvia no Porto.

“Em Lisboa não há nenhum sentimento de rivalidade relativamente ao Porto.”

O Porto na posição de “atacante”

Helder Pacheco não estranha a posição de “atacante” do Porto e corrobora a noção de Lisboa como cidade sem dono. Esse, aliás, é o seu “grande problema”: “Para encontrar um lisboeta é preciso andar com uma lupa.

No Porto ainda encontramos muita gente que nasceu e viveu sempre cá.”

Se falar de “antagonismo social, político e cultural entre os dois povos” é um equívoco, o mesmo não se pode dizer em relação ao epicentro do poder, o famigerado Terreiro do Paço: “Contra esse, o Porto tem estado quase sempre, desde o D. João I.

Porque se sente espoliado e injustiçado, como no caso do Infarmed e do Tribunal de Contas.”

Nas recheadas estantes do seu escritório há provas da antiguidade da discussão. Helder Pacheco saca um livro de Firmino Pereira e cita: “A Arcada, o velho ponto de reunião da malandrice nacional de todos os tempos, rugia, vermelha de raiva, quando o Porto, do alto dos seus tamancos e agitando a carapuça, pedia coisas, exigia reformas, dizia com arreganho aos senhores da governança que tivessem juízo.” De sorriso aberto, deixa pergunta e réplica em simultâneo: “Sabe de que ano é? 1914.”

Uma coisa os portuenses podem reclamar para si: o nome Portugal vai buscar à sua segunda maior cidade o nome latino de Portus Cale. “Isso nem os lisboetas nem ninguém lhes pode tirar”, diz o historiador José Manuel Garcia, que acredita que nesta rivalidade entre as duas maiores cidades do país, a Invicta terá “alguma culpa”.

“Em termos históricos, o Porto sempre foi uma cidade muito independente”, diz o historiador que integra também o Gabinete de Estudos Olisiponenses. Cedo se tornou cidade burguesa, que não via com bons olhos a intromissão de ?dalgos na urbe e, por isso, se foi afastando do poder central. “Os reis também não iam muito ao Porto porque talvez não se sentissem muito confortáveis”, repara.

Mas não era possível competir com a geogra?a de Lisboa: mais central no território, com um estuário do Tejo profundo, um dos melhores portos da Europa. Os reis, a partir de D. Afonso III, preferiram o Porto a Lisboa, conta José Manuel Garcia.

Sobretudo D. Manuel I, o rei que fez crescer Lisboa e criou o tão malamado Terreiro do Paço. E era dali, daqueles 200 e poucos metros quadrados que se de?niam os destinos da nação. “Houve uma centralização régia muito forte que fez com que o Porto fosse preterido no poder político central”, diz o historiador. Ao longo dos séculos, tornou-se um símbolo histórico do poder político e do centralismo do Estado.

Mas nem só de controversas linhas se coze, no entanto, a história desta relação. Depois da revolução liberal de 1820, a vitória dos liberais na Guerra Civil, que terminou em 1834, e que os opôs aos absolutistas, “conseguiuse graças ao Porto”. “Foi lá que eles ?caram cercados pelos miguelistas, pelos absolutistas, e foi graças ao Porto que se conseguiu a liberdade”, repara o historiador José Manuel Garcia. Ou então quando D. João I foi aclamado durante a crise de 1383-1385 e o Porto apoiou sempre todas as iniciativas, como a conquista de Ceuta em 1415, ainda que Helder Pacheco reconheça que os portuenses se sentem defraudados desde então.

Vidas pendulares

No mapa mental de Rui Silvestre, nem o Porto acaba no Douro, nem Lisboa começa no Tejo. É por isso que para início de conversa deixa logo um ponto assente: “Tenho muito pouca a?nidade com esta guerrinha e não a alimento.”

Aos 53 anos, Rui faz parte da franja de portuenses que enche os comboios e os autocarros à sexta-feira à noite e ao domingo ao ?m da tarde ou à segunda de madrugada. A vida pendular de Rui faz-se entre as duas cidades porque o trabalho está na capital, mas gosta demais do Porto para ser capaz de deslocalizar “a sua base familiar”. É lá que está a família para onde volta todos os ?ns-de-semana.

A família é beirã, ele nasceu em Lisboa “por acaso” porque o pai trabalhava na capital. Depois foi para Seia, de lá para estudar na Figueira da Foz, até que chegou ao Porto para fazer o curso de Gestão em 1985. Desde então andou, sempre em trabalho, por várias cidades do Norte. E foi o trabalho que o trouxe a Lisboa em 2000. Esteve por cá três anos. Voltou ao Porto e novamente à capital em 2006 por mais cinco anos. Até que rumou novamente a sul em 2017 para ser director executivo do atelier da artista plástica Joana Vasconcelos.

Assume que tinha alguns “preconceitos” sobre o que seria viver em Lisboa. Além do trânsito e da poluição – o Tejo salva-o de tudo isto havia outros julgamentos sobre o que seria trabalhar na capital. “Tinha essa ideia de que não era uma cidade de trabalho, que era só para as grandes empresas”.

Habituado a andar para cima e para baixo, reconhece que não é fácil marcar uma reunião no Porto se os participantes tiverem de sair de Lisboa. “Digo isso muitas vezes: os 300 quilómetros para baixo são mais curtos do que os 300 quilómetros para cima”, nota. “Há um corpo muito grande de organizações com relevância que estão em Lisboa. E isso faz com que as pessoas, intuitivamente, se tenham habituado a deslocar-se a Lisboa”, acredita. E, por isso, defende que há decisões que têm de ser descentralizadas. Hoje, está certo de que “a ideia de que não se trabalha em Lisboa é errada”.

Não será a única a entrar para o rol dos preconceitos a abater. Se João Gobern mandasse, havia pelo menos dois que aniquilava à partida. Mensagem para os lisboetas: “O Porto não é provinciano.” Recado para os portuenses: “Em Lisboa também se trabalha.” Filho de Appio Sottomayor, um dos grandes cronistas dos costumes lisboetas, João Gobern cresceu rodeado de uma livraria invejável sobre a cidade.

Nascido na Alfredo da Costa, morou no Estoril a partir dos sete anos e só regressaria a Lisboa aos 28. A vida corrida e intensa de jornalista não lhe dava tempo para relações intensas com a urbe. “Não era um descobridor de Lisboa, para desgosto do meu pai. Ainda hoje me dá na cabeça por não saber os nomes de algumas ruas”, conta divertido. Havia o fascínio por alguns pormenores, mas também algum desencanto ao testemunhar a perda de uma certa autenticidade.

A relação com a geogra?a nortenha é antiga. O avô tinha vivido no Porto até 1970 e ele passava muitos ?ns-de-semana e férias com ele.

Mais tarde, frequentava a noite portuense – o Indústria, o Swing, o Lá Lá – , ia ao Tubitek comprar discos que não encontrava em mais lado nenhum, fazia compras em Santa Catarina. Há uns 30 anos, recorda, ensaiou uma mudança de malas e bagagens com uma proposta quase provocatória: “Notei sempre uma certa soberba em relação às redacções do Porto, vistas como delegações. E sugeri mudar a sede do [jornal] Se7e para cá”, conta. O parecer foi negativo. Mas décadas depois, sem pedir autorizações, fez a viagem de?nitiva. Desta vez por amor.

Ao comunicar a decisão aos amigos lisboetas, João Gobern recebeu olhares de incompreensão. “Criaram até um momento solene, uma espécie de intervenção, para me demover.” A decisão estava tomada, contra “desconhecimentos e algum preconceito”: em 2005, de malas e bagagens, mudou-se para a Póvoa de Varzim, a 30 quilómetros do Porto.

E nunca se arrependeu.

Marta de Carvalho Ambrósio apaixonou-se em Lisboa por um portuense. À terra do namorado tinha ido uma única vez. Mas quando ele recebeu uma oferta de emprego melhor, arriscou a jornada para o desconhecido. No Porto, mudou de área pro?ssional, abriu um dojo para dar aulas de Kenpo, teve dois ?lhos. “Apaixonei-me rapidamente pela cidade e adaptei-me bem às diferenças”: mais reuniões em casa de amigos e menos em restaurantes, expressões desconhecidas, menos trânsito, o mar sempre perto, as pessoas “mais fechadas, descon?adas e bairristas”.

O tempo como factor de integração foi uma aprendizagem para Marta (“por cá, é preciso conquistar”).

Tal como para João Gobern. Se há uma ideia feita com algum sentido, diz, então ?que-se com esta: “É mais difícil, mas também mais compensador fazer amigos no Porto. Não se entra tão facilmente, mas também não se sai à primeira.” Teresa Uva não podia estar mais de acordo.

“Demora a entrar, mas depois se for embora e passado um ano ou dois voltar, recebem-na como se tivesse ido embora ontem”, diz. Mas para grandes males, grandes remédios: com os amigos do Porto, acabou por criar um grupo – Os Cimbalinos agora já integra alfacinhas. A?nal, não há guerra que não acabe em paixão. Não será errado, pois, falar das amizades mais sólidas a Norte. Mas é preciso não cair em exageros.

O potencial de polémica aumenta se o debate é sobre comida. A?nal, onde se come melhor?

João Gobern assume um lado: “Aí não há dúvidas: num restaurante médio do Porto come-se in?nitamente melhor do que num restaurante médio de Lisboa”, aponta.

Paulo M. Morais não dá voto de qualidade. Mas se o tópico é quantidade, a vitória é portuense e com goleada: “Tamanhos XL e preços mais simpáticos”, responde. O escritor tem, a esse propósito, um episódio inesquecível. Fazia crítica gastronómica numa revista para chefs e foi fazer uma prova a uma escola de hotelaria no Norte.

Havia 20 a 30 pratos para avaliar e, quando começaram a chegar à mesa, Paulo comentou a “quantidade gigantesca” das doses, preocupado por não conseguir comer tudo.

“Ficaram a olhar para mim como quem diz ‘mas isto é normal…’.”

A Teresa Uva falta-lhe o pão bom e o arroz bem feito nos restaurantes.

“Parece que em Lisboa não se sabe fazer bom arroz. Muito cimento, muita argamassa. Não se sabe fazer o arroz soltinho.” A publicitária nunca deixou de ir ao Porto. Em Março, deve voltar para ir buscar uns pãezinhos. “Trago sempre”, ri-se. Mas se o assunto é um pastel de nata, nota Paulo M. Morais, não há volta a dar: “Aqui nem posso dizer pastel! E é preciso procurar muito para encontrar um como deve ser.”

Uma proposta pro?ssional atraiu Ricardo Gouveia, 26 anos, para o Porto. Contrariando a sentença da capital como terra das oportunidades fartas, aceitou o convite de um atelier de arquitectura para dar os primeiros passos na pro?ssão.

Apesar do “meio mais pequeno”, encontrou uma cidade “quase tão cosmopolita como Lisboa” onde, talvez por um “processo de turistificação mais tardio”, a autenticidade “resiste mais”, lado a lado com o “gourmet para turista” ver. Guerrilhas ou choque cultural? “Só na linguagem”, responde sorridente, dando conta de duas das “traduções” que teve de aprender: “aloquete” em vez de cadeado e “cruzeta” em vez de cabide.

A ida de João Santos para a capital não é diferente da deTeresa Uva ou de Fernando Medina. Licenciatura em Gestão na Universidade Porto concluída, um mestrado em Lisboa que lhe enchia as medidas. Por que não arriscar? Só que além do risco, o jovem de 22 anos, nascido na Invicta, mas criado em Matosinhos – “mas o Porto é a minha cidade”, ressalva – diz que esta mudança foi também uma “decisão estratégica”. Pela capital, diz, seria mais fácil começar uma carreira, encontrar o primeiro emprego, conta com um sotaque carregado, ainda pouco suavizado pelo tempo.

Mudou-se em Agosto de 2017, com a ideia de que, se calhar, teria de aprender a lidar com a arrogância de alguns alfacinhas. Nada disso foi preciso, porque ninguém foi sobranceiro, ainda que continuem a brincar com o seu sotaque. “Então na empresa pegam bastante. Mas eu levo no bom sentido, como se estivesse a levar as minhas raízes a outro lugar”, diz.

A diferença na linguagem foi para Paulo M. Morais um fosso signi?cativo. Ultrapassada a questão do sotaque (“Já não me gozam”) e afastado o preconceito da simpatia mais acentuada a Norte, o escritor não deixa de notar um “traço genuíno” do Porto que deixa as duas cidades em frequências distintas: “O uso de palavrões como vírgulas é, em Lisboa, impensável”.

Para os alfacinhas, as palavras têm um “papel pesado” e asneiras só se utilizam para ofender. “Tem sido quase libertador aprender a usar as vírgulas cá de cima”, brinca.

E falando na personalidade vincada dos portuenses, a pergunta que se impõe ao presidente do município lisboeta: seria possível ter um alfacinha à frente dos destinos dos portuenses? Medina chuta a resposta para o Porto, mas acredita que a Invicta de hoje é uma cidade “mais aberta” do que quando era estudante. Rui, assim como João, acredita que sim. “Acho que é possível. Isso é mais um daqueles mitos urbanos”, diz.

Mas para Teresa a ideia não vingaria: “Iam sempre dizer que era um ‘mouro’ que não conhecia a cidade.” Voltemos à História e a Helder Pacheco. “No pós-25 de Abril surgiu um factor emergente que foi a grande rivalidade provocada pelo futebol”, começa. Mas o campeonato dos “regionalismos futebolísticos” trouxe aquilo a que chama “divisões arti?? ciais” – as verdadeiras são ” políticas económicas e sociais”. Palavra de um portista ferrenho: “Parece que houve uma teoria de conspiração para fazer com que o futebol se tornasse o grande factor de desagregação do país.

Quando coitado do futebol… É apenas o bode expiatório.”

Para João Gobern, os “verdadeiros poderes” servem-se da bola para “varrer para debaixo do tapete” um problema maior: “Enquanto estas raivas e confrontos acontecerem no futebol não os chateiam a eles”.

Ponham-se, então, os pontos nos is: “Nem o Futebol Clube do Porto é o Porto, nem o Ben?ca ou o Sporting são Lisboa. Reduzir as coisas ao futebol é um disparate.”

Rui Silvestre é a prova de que o amor pelas duas cidades é possível.

Mudar a base para a capital seria muito difícil, mas isso não lhe tolda o olhar nem impede um vínculo com Lisboa. “Todos temos a ganhar se houver esse trabalho cooperativo entre as regiões. O resto do país tem muito a dar a Lisboa”, diz. Mesmo porque, sublinha Helder Pacheco, “os problemas do homem comum são os mesmos nas duas cidades”.

E, emoções à parte, a “capacidade de intervenção” das duas geogra?as unidas será sempre “maior” do que em desunião, sublinha Gobern.

“Não podemos estar de costas voltadas. Reconhecendo que há uma centralização e longe da vista é longe do coração… que diabo: são só 300 quilómetros!”

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