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Autarcas inventaram uma ONG para obter subsídios

Autarcas inventaram uma ONG para obter subsídios

Anterior e actual presidente da Câmara de Castelo Branco, com outros autarcas do PS, criaram uma ONGD que nunca foi reconhecida e que não tem qualquer actividade. Mas recebeu pelo menos 350 mil euros de fundos públicos e um edifício

“L’Atitudes – Associação para a Dinamização de Projectos e Redes Globais de Cooperação e Desenvolvimento – ONGD” é o seu nome completo.

Desconhecida na região, mesmo por ex-autarcas que têm o nome na lista dos actuais dez sócios individuais, mais parece uma sociedade secreta.

Na Internet tem um site onde apenas se encontra o seu logotipo. A direcção recusa-se a dizer o que faz, bem como a mostrar os relatórios de actividades da associação. E até a revelar o nome dos seus dirigentes.

As contas da Câmara de Castelo Branco indicam, todavia, que o município lhe deu 150 mil euros em 2014. De acordo com a acta da reunião camarária de 20 de Setembro de 2013, a atribuição daquele subsídio foi proposta pelo então presidente da autarquia, o histórico socialista Joaquim Morão. Objectivo: “execução de obras de requalificação da sua sede (…).”

No momento da votação, lê-se na acta, Morão ausentou-se. Os restantes vereadores, entre os quais o actual presidente da câmara, Luís Correia, bem como Arnaldo Brás e João Carvalhinho, votaram a favor, tal como Manuel Eusébio, do PSD. O que a acta não diz é que o autor da proposta, além de presidente da câmara, era presidente da associação beneficiada, e que Correia, Brás e Carvalhinho eram seus sócios e dirigentes.

Na acta também não consta que o pedido do subsídio foi dirigido a Morão, na qualidade de presidente da câmara, por António Realinho, vice-presidente da UAtitudes e também vice-presidente e director executivo da Adraces (Associação para o Desenvolvimento da Raia Centro- Sul) – uma importante organização criada em 1992 por Morão e Realinho, os mesmos que fundaram a L’Atitudes em 2010, e que é a única entidade colectiva sócia desta última. Entre os sócios da Adraces destacam-se, também como fmanciadores, as câmaras de Castelo Branco, Vila Velha de Ródão, Idanha-a-Nova e Penamacor.

A fundamentar o pedido, Realinho diz que a L’Atitudes “é uma organização não governamental para o desenvolvimento, de direito privado e fins não lucrativos” e que o subsídio será exclusivamente utilizado na “requalificação” de um edifício camarário em que funcionará a sua sede e também a da Adraces.

Três meses antes, Joaquim Morão, presidente da UAtitudes mas em representação da câmara, e Realinho, enquanto vice-presidente daquela associação, já tinham assinado um contrato de comodato através do qual o município lhe cedeu gratuitamente um prédio no Largo de São João, no centro da cidade. O edifício fora comprado no ano anterior e o contrato estipulava que a UAtitudes ficava obrigada a “recuperar o imóvel e financiar a respectiva requalificação”.

Essa obrigação da associação foi no entanto esquecida pouco depois, quando a câmara lhe concedeu os referidos 150 mil euros. De acordo com o ex-vereador João Carvalhinho – que respondeu ao PÚBLICO em nome da L’Atitudes – o custo total das obras e da compra dos móveis e computadores foi de 368.189 euros (com IVA), dos quais 150 mil foram pagos pela câmara e 200 mil pelo Proder (Programa de Desenvolvimento Rural).

Um estranho pedido

Para perceber a história, importa recuar a Novembro de 2012, meses depois de a câmara comprar o prédio. António Realinho dirigiu-lhe então um pedido semelhante àquele que, no ano seguinte, viria a fazer para a UAtitudes. Só que nessa primeira vez fê-lo em nome da Adraces e com a finalidade principal de ali instalar a sua sede.

Nessa altura, todavia, a Adraces já tinha sede e não era uma sede qualquer. Era um edifício com óptimas condições, localizado em Vila Velha de Ródão, cedido pela câmara local e ampliado com fundos europeus. É lá, aliás, que permanece a sua sede. Três semanas depois, a cedência do edifício de Castelo Branco à Adraces foi aprovada por proposta de Morão e o contrato foi assinado no dia seguinte.

Entre os vereadores que aprovaram a cedência, estava Arnaldo Brás, então presidente da associação, actual presidente da Assembleia Municipal da cidade e líder concelhio do PS.

Passados quatro meses, em Maio de 2013, Realinho escreve novamente a Morão e faz-lhe um estranho pedido. Solicita que a Adraces seja autorizada a ceder à UAtitudes a sua posição naquele contrato. Seis dias antes, os dois homens tinham apresentado nas Finanças a declaração de início de actividade da UAtitudes.

E no mesmo dia reuniram os então 11 sócios individuais para distribuírem entre eles os 11 lugares dos corpos sociais.

Em Fevereiro desse ano, porém, Morão e Realinho já tinham posto o plano em marcha. Com a assinatura do segundo, a L’Atitudes (não a Adraces) havia apresentado um pedido de apoio ao Proder no valor de 200 mil euros. Este montante era o máximo previsto no regulamento e destinava-se a recuperar e equipar o edifício que a câmara cedera à Adraces.

Sucede que o Proder era gerido na região pela mesma Adraces, ficando a aprovação do pedido da UAtitudes nas mãos do seu presidente, que além de ser também vice-presidente da Adraces era o coordenador da sua equipa de avaliação.

Confissão e fantasias

Quanto ao pedido de cessão da posição da Adraces em favor da UAtitudes, a câmara aprovou-o por unanimidade em Junho. Na votação participaram todos os vereadores que dirigiam as duas associações. Da acta da reunião faz parte a carta de Realinho, em que este confessa a razão do seu estranho pedido: a Adraces tinha esgotado a verba a que poderia ter acesso no âmbito do Proder e não poderia, por isso, obter o financiamento pretendido.

Relativamente ao pedido que a UAtitudes apresentou ao Proder, o mínimo que se pode dizer dele é que é fantasioso. Desde logo, porque garante a viabilidade da associação com resultados positivos anuais de 74.886 euros, sem sequer contar com os 150 mil euros que virá a receber da câmara, e porque estima em 230 mil euros as suas receitas em cada um dos sete anos seguintes.

Para chegar a esse valor, contabiliza 162 mil euros das vendas da revista Viver, mais 11 mil relativos à participação em feiras e 50 mil provenientes de serviços de consultoria.

No caso da Viver, prevê a venda de 3 mil exemplares por mês a 4,5 euros cada. Sucede que a revista em causa – que tinha Realinho como director e o conhecido resistente antifascista Camilo Mortágua como editor – era propriedade da Adraces e não da L’Atitudes.

Além disso, era uma publicação trimestral que na verdade nem semestral chegou a ser, publicando 25 números entre 2006 e 2016, ano em que saiu a última edição. Acresce que a sua distribuição foi sempre gratuita, sendo financiada pelas câmaras sócias da Adraces e pelos fundos europeus. Sucede também que, até hoje, a associação nunca teve quaisquer receitas além dos subsídios obtidos e os seus resultados foram sempre negativos.

Apesar de todas as incongruências do pedido de apoio, Realinho, como coordenador técnico da Adraces, e os autarcas que integravam o seu órgão de gestão aprovaram-no em Novembro de 2013. E aprovaram-no sem qualquer corte e com uma das mais altas classificações (17,4 em 20) atribuídas aos pedidos então apreciados, preterindo outros com classificações inferiores.

Já em Julho de 2014, um mês depois de as obras começarem, foi emitida a licença de construção.

Quem a assinou foi Joaquim Morão, presidente da câmara, presidente da L’Atitudes e semanas antes eleito presidente da Adraces.

Uma outra perplexidade relacionada com a CAtitudes prende-se com o facto de ela se apresentar como uma organização não governamental para o desenvolvimento.

De acordo com o Instituto Camões – entidade dependente do Ministério dos Negócios Estrangeiros a quem compete o registo e o reconhecimento das ONGD -, aquela associação “não está registada como ONGD e nunca solicitou a obtenção deste estatuto jurídico”.

No início de Outubro, quem passava no Largo São João, em Castelo Banco, via um edifício com as letras Adraces afixadas na fachada. O reclamo, de grandes dimensões, identificava o pólo local daquela associação, cuja sede sempre foi em Vila Velha de Ródão. Duas semanas depois, o anúncio da Adraces havia sido removido e junto à porta tinham sido colocadas duas discretas placas: uma com o logotipo da associação L’Atitudes e a palavra “sede”; a outra identificava um Centro de Informação Europeia.

Por coincidência, ou não, estas mudanças antecederam a visita da Inspecção-Geral da Agricultura (IGAMAOT). A deslocação dos inspectores, comunicada à L/Atitudes seis dias antes, como mandam as regras, destinava-se a verificar o destino dado aos 200 mil euros do Proder. Um dos principais tópicos do controlo consistia na confirmação do funcionamento, no local, da sede da UAtitudes e do chamado Centro de Apoio ao Desenvolvimento Socioeconómico e Cultural da Beira Interior Sul – serviço cuja criação, bem como as obras no prédio, foi o principal motivo da atribuição do subsídio.

Por outro lado, cabia à IGAMAOT verificar se os outros objectivos que a associação se propunha tinham sido cumpridos. Entre eles, destacava-se a publicação de uma newsletter mensal, a promoção de um workshop por mês, de seis acções de formação por ano e de outros tantos “eventos promocionais de sensibilização e cidadania”.

No fim de Dezembro, os inspec- / tores concluíram que “a operação foi executada de acordo com o aprovado e contratado”. De açor- \ do com a documentação recolhida pela equipa, tudo parecia efectivamente correcto. Aquilo de que os inspectores não se aperceberam, até por causa da natureza destes controlos, foi que os serviços existentes no edifício têm que ver apenas com o pólo local da Adraces e que a quase totalidade dos elementos que lhes foram disponibilizados se refere a acções dessa entidade e não da UAtitudes, a beneficiária do subsídio.

Fundador está na prisão

Perante isto, o PÚBLICO pediu à direcção desta associação os seus relatórios de actividades, mas a resposta foi negativa, com a justificação de “não serem atendíveis razões” para disponibilizar tal informação. O mesmo foi respondido quanto ao pedido de identificação dos membros dos órgãos sociais.

Apesar disso, a direcção identificou os sócios da LAtitudes. São eles, além da associação Adraces, dez antigos e actuais autarcas eleitos pelo PS nas câmaras de Castelo Branco, Idanhaa-Nova, Penamacor e Vila Velha de Ródão. Na lista dos sócios não consta António Realinho. Segundo João Carvalhinho, o fundador e primeiro vicepresidente da associação, “solicitou, há meses, a sua desvinculação”. Este economista e empresário, que até ao Verão passado era vice-presidente e director executivo da Adraces, está desde Agosto a cumprir quatro anos e meio de prisão a que foi condenado por burla em negócios de uma da suas empresas, sem qualquer ligação à Adraces. Em 2015 e 2016, conforme o PÚBLICO revelou em Março do ano passado, duas das suas empresas foram utilizadas pela Câmara de Lisboa para simular uma consulta ao mercado e viabilizar a contratação de Joaquim Morão (na foto em baixo) como consultor do vereador Manuel Salgado.

‘V. Quanto aos actuais sócios, S dois deles, Domingos Tor- I* rão, agora desligado do PS, -^’ e um outro que pediu ^ não ser identificado seramao PÚBLICO que não se recordam de alguma vez ,ter ouvido falar na LAtitudes. O mesmo respondeu Manuel Eusébio, ex-vereador do PSD que participou na reunião de 2013 em que o subsídio camarário foi aprovado, e Carlos Almeida, o actual vereador do PSD que tem reclamado, repetidamente e em vão, a elaboração de um regulamento municipal de atribuição de subsídios.

Desconhecimento total sobre a associação foi o que revelaram também numerosos residentes em Castelo Branco, entre as quais, advogados e jornalistas e militantes de vários partidos.

“Interesse público”

Questionado sobre os apoios atribuídos à UAtitudes, o autarca de Castelo Branco afirmou que a cedência à associação de um imóvel, “devoluto e muito degradado (…) permitiu que, através do acesso a fundos comunitários, [ele] pudesse ser recuperado, valorizado e utilizado ao serviço da comunidade, mantendo-se na titularidade do município, tendo assim no caso vertente sido perseguido o interesse público municipal”. Luís Correia rejeita, por ouro lado, a existência de impedimentos legais para ele próprio, Joaquim Morão e os vereadores Brás e Carvalhinho intervirem na aprovação dos apoios à associação de que eram dirigentes.

Os autarcas em questão não estavam impedidos de intervir, afirma contrariandoo entendimento dos tribunais -, porque “a câmara, ao deliberar como deliberou, fê-lo na prossecução do interesse público do município (…) e [porque] o apoio monetário foi concedido a uma associação que, em termos estatutários, também prossegue o interesse geral da comunidade, inexistindo pois interesses contrapostos ou conflituantes capazes de pôr em causa o princípio da imparcialidade no exercício das suas funções de vereadores”.

Luís Correia, que é casado com Hortense Martins, deputada e líder distrital do PS, tem a correr contra si um processo em que o Ministério Público pede a perda do seu mandato por ter assinado, em nome do município, vários contratos de empreitada com o próprio pai.

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