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Pena de morte pode doer, decide Supremo dos EUA

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Violência doméstica tem “impacto devastador” nas crianças

Violência doméstica tem “impacto devastador” nas crianças

Parlamento debate 15 propostas sobre violência doméstica. PSD, BE e PAN propõem mais protecção para as crianças que testemunhem agressões

Aline Flor

À quarta queixa na polícia, Sílvia (nome fictício) viu o seu caso finalmente julgado como violência doméstica. Por diversas vezes, as discussões com o companheiro terminavam em agressões. Numa das ocasiões, Carlos (nome fictício) agarrou a sua cabeça e abanou-a “na presença dos filhos menores”, conforme se lê no despacho de arquivamento de uma das queixas anteriores (enquadrada como ofensa à integridade física), já que os factos não foram considerados de “elevada gravidade” e não integravam, assim, “a prática de violência doméstica”. Em 2016, depois de um episódio de particular agressividade que foi a gota de água, Sílvia separouse definitivamente de Carlos, ao fim de seis anos de agressões, durante os quais viveram juntos de forma intermitente. As crianças, agora com seis e nove anos, assistiram a muitas delas.

Mas na condenação por violência doméstica do início de 2017 – três anos de prisão com pena suspensa, com pulseira electrónica e frequência de acompanhamento para agressores – os filhos não foram mencionados.

Na decisão condenatória, é decretada como pena acessória a proibição de contacto com a vítima “sem prejuízo dos necessários contactos relativos aos filhos menores de ambos”.

“Agrediu a mãe mas é óptimo pai?

Isto não faz sentido nenhum”, alerta Frederico Moyano Marques, jurista da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Mas o “impacto devastador” sobre as crianças muitas vezes fica para trás nas decisões dos tribunais, dando-se prioridade ao contacto com o agressor ao considerar-se que é do superior interesse da criança manter relações com ambos os pais.

Na avaliação feita a Portugal, publicada em Janeiro deste ano, o GREVIO – comité que analisa a aplicação da Convenção do Conselho da Europa sobre violência doméstica e de género (Convenção de Istambul) – reforça várias vezes que é preciso reconhecer as necessidades de apoio e protecção das crianças que testemunham agressões entre os pais. Em cerca de 35% dos casos de violência doméstica, os filhos são testemunhas, lê-se no relatório. Só que, de acordo com a lei portuguesa, quando presencia a agressão perpetrada por um dos pais contra outro, uma criança não é vista como vítima, mas como testemunha.

O facto é tratado apenas como elemento que pode levar à agravação do crime de um progenitor contra o outro (a pena mínima passa de um para dois anos).

É aqui que entram as propostas que serão debatidas pelo Parlamento a 16 de Abril. Das 15 propostas apresentadas por seis partidos, três contemplam alterações à Lei 112/2009 sobre violência doméstica no sentido de proteger crianças que testemunhem episódios que constituem este crime. O PAN propõe mais comunicação entre tribunais criminais e as secções de família e menores, assim como apoio psicológico gratuito para as crianças e uma reavaliação da regulação das responsabilidades parentais no final da pena.

O PSD, por sua vez, quer reforçar a obrigatoriedade de denúncia destes crimes por parte dos profissionais da administração pública – saúde, educação, Segurança Social – que deles tenham conhecimento no exercício das suas funções, introduzindo ainda “dever especial de comunicação às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens”. O BE, por fim, propõe que as crianças testemunhas possam receber o estatuto de vítima especialmente vulnerável, assim como a obrigatoriedade da recolha de declaração para memória futura.

Este estatuto é atribuído a vítimas a quem são reconhecidas necessidades especiais a nível de protecção, com um conjunto de medidas para tornar o processo menos “revitimizador”. A advogada Leonor Valente Monteiro, especialista em direito da família, explica que reconhecer as crianças como vítimas especialmente vulneráveis poderia dar-lhes uma série de benefícios, como não terem de estar em contacto com a pessoa que promove a violência, constituir advogado (ao invés de ser acompanhada por um dos pais), beneficiar de medidas de protecção. Ao incluir expressamente as crianças testemunhas no leque de vítimas de violência doméstica, reconhece-se finalmente na lei o que a investigação tem indicado: que o impacto negativo sobre as crianças de presenciar as agressões é muito próximo do que haveria se elas próprias fossem agredidas em contexto de violência doméstica. E a ideia subjacente à atribuição desse estatuto – de que a agressão a um progenitor é uma agressão à criança que o presencia – ainda não é norma nos tribunais, explica a advogada.

Para Frederico Marques, da APAV, reconhecer as crianças como vítimas poderia trazer uma mudança de paradigma, em particular nos juízos de família e menores, passando de uma lógica que prioriza o contacto com ambos os pais (mesmo que um deles seja um agressor) para a protecção da criança. Sublinha que “cada tribunal é soberano e independente”, mas seria um avanço que quem toma decisões “pense duas vezes antes de priorizar o contacto com um agressor”.

Com a constituição como vítima da criança exposta à violência, poderiam mesmo estar em causa dois crimes de violência doméstica, e não apenas um crime contra a mãe ou pai com uma circunstância agravante.

Em liberdade mas com restrição de contacto com a ex-companheira, Carlos não desistiu de ver os filhos. No juízo de família e menores, decidiu-se que a mãe ficaria com as crianças. O pai pode vê-los a cada 15 dias sob supervisão das assistentes sociais, algo que nem sempre ocorreu pacificamente. Aversão que vingou junto das assistentes sociais foi a de que as agressões contra a ex-mulher resultaram de conflitos entre o casal, que poderiam ter em Carlos a parte mais agressiva mas que também eram responsabilidade da mãe, e que esta estaria agora a dificultar os contactos com os filhos.

No entanto, as visitas deixam as crianças inquietas. A filha mais velha, agora com nove anos, já fez valer a vontade de não ver mais o pai, de quem guarda memórias de várias agressões à mãe. O menor de seis anos chegou mesmo a faltar às primeiras visitas sem supervisão, decretadas no final do ano passado, por ficar doente nos dias anteriores. Hoje, com acompanhamento psicológico, já começa a aproveitar os curtos momentos de companhia do pai.

Natália Faria

Ana espera há seis meses pelo avanço da queixa que apresentou contra o ex-marido. A GNR deu-lhe um “botão de pânico”

Ana lembra-se bem. No dia 13 de Outubro de 2018, quando ganhou coragem para empacotar algumas coisas e sair de casa com os dois filhos, na sequência de um divórcio difícil, o ex-marido correu à garagem e pegou num serrote, com a ameaça de que a matava. “Agarrou-me à frente dos meus filhos a dizer que me matava e que se suicidava a seguir. Os meus filhos disseram-me para eu entrar no carro e fugir, enquanto o seguravam. Mas ele soltou-se e veio com o serrote atrás de mim. Um dos miúdos bateu-lhe num braço com um pau para o serrote cair e eu consegui apanhá-lo. Quando a GNR chegou, viu tudo o que se tinha passado pelas imagens de vídeo que tinham sido captadas pelas câmaras que existem no exterior da casa”, recorda.

O episódio surge reconstituído no relatório da GNR, consultado pelo PÚBLICO. Nesse dia, a polícia atribuiu-lhe o estatuto de vítima “especialmente vulnerável” e passou-lhe para as mãos um dispositivo de emergência, dotado de geolocalização, com a recomendação de que premisse o botão SOS sempre que se sentisse em perigo. Desde esse dia, Ana (nome fictício) voltou apenas duas vezes a casa, sempre com protecção da GNR, para recolher roupas e objectos pessoais. É, apesar de todas as recomendações do Conselho da Europa, o alegado agressor que habita ainda hoje a casa que era morada de família, apesar de o respectivo empréstimo bancário continuar a ser pago pelos dois. E, meio ano volvido, o processocrime por violência doméstica ainda não passou da fase de inquirição de testemunhas.

Parecem reunidos os ingredientes para que este seja mais um daqueles casos em que a Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica é chamada a perceber o que correu mal na actuação das autoridades perante mais uma mulher morta, quando já nada mais há a fazer. É pelo menos esse o receio de Ana. Na rua, não dá um passo sem olhar para trás. Quando se dirige para a casa para onde entretanto se mudou com o filho mais novo (o mais velho já vive com a namorada), dá voltas à rotunda para conferir se o ex-marido não a persegue. “Eu não dispenso este aparelho [dispositivo SOS] nem quando vou ao ginásio. Deixei a casa, sou perseguida, ameaçada – ele anda sempre a mandar dizer pelos meus filhos que me vai matar ou furar os pneus do carro -, e a única coisa que o tribunal lhe faz é aplicar-lhe o termo de identidade e residência!”, indignase, para acrescentar, com a ironia de que é capaz: “O tribunal deve estar à espera de que eu seja morta para lhe mudar a medida de coacção.”

Recusa-se a adequar-se ao estereótipo clássico da vítima. Ana é financeiramente independente, não deixou de se vestir bem, maquilhar ou enfeitar com um ou outro colar, nem mesmo quando o casamento a fazia encolher-se. “Ele controlava o meu telemóvel, revistava-me a carteira, remexia as minhas gavetas. Ia ao correio e ficava-me com as cartas. Se eu lhe dizia alguma coisa, ficava vermelho, até os olhos pareciam que lhe saíam das órbitas, e punha-se logo: ‘O que é que queres? Parto-te os dentes! Queres que vá a casa da tua mãe e a mate?’ A minha mãe é viúva e vive sozinha.

Eu ficava tolhida de medo.”

Se acontecia desabafar com a mãe, Ana não encontrava compreensão. “O que ouvia era ‘Aguenta pelos filhos…’.” Quando tomou a decisão de se divorciar (“Ia a caminho dos 50 anos, o tempo estava a passar e percebi que não estava a fazer nada com a minha vida a não ser aguentar um homem que era doido”), estava longe de adivinhar o inferno que se seguiria. Ele impôs como condição para o divórcio ficar com o direito a residir provisoriamente na casa. Alegando embora que a casa tinha sido construída num terreno que era seu, e parcialmente com dinheiro que vinha da sua mãe, Ana aceitou, na esperança de que fosse vendida rapidamente.

Porém, três anos depois, já com o divórcio consumadíssimo, continuavam os dois debaixo do mesmo tecto: ele numa parte da casa, ela com os dois filhos, um dos quais ainda menor, na outra. “Sempre que aparecia alguém interessado em comprar, ele recusava-se a assinar. E as pessoas podem pensar que é fácil sair, mas aquela casa foi construída no local onde nasci. A minha mãe mora ali perto, as minhas avós também. A minha vida estava toda ali. E depois há a vergonha, a auto-estima vai-se, a situação arrasta-se: num ano era porque havia um baptizado, no outro era porque o filho ia entrar na universidade. Até que um dia foram os meus filhos que me disseram: ‘Mãe, tu estás a aguentar isto por nossa causa, mas não precisas.

Temos de sair daqui.'”

Foi pouco antes desse dia 13 de Outubro de 2018, o dia da agressão física.

Dessa vez, com o divórcio finalmente na praça pública (“eu, que aguentei o casamento por vergonha, acabei por sair de casa escoltada pela GNR com toda a gente a ver”), Ana não retirou a queixa como fizera anos antes, quando fora fisicamente agredida. Não contava era com o caos que se seguiria. O processo-crime arrasta-se, as responsabilidades parentais entretanto foram-lhe atribuídas, com a condição de o agressor pagar uma pensão de cem euros pelo filho menor, mas a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, segundo diz, nem sequer sabia que estava perante uma vítima de violência doméstica. “Como queriam ouvir o meu filho mais novo e não conseguiam que o pai lhes atendesse o telefone, chegaram a sugerir-me que eu falasse com ele para que autorizasse. Perguntei-lhes: ‘Mas acham que eu tenho condições de diálogo!?’

E a assistente, que se preparava para arquivar o processo com o argumento de que o meu filho ia fazer 18 anos, só aí é que percebeu que havia uma queixa no Ministério Público por violência doméstica.”

Enquanto não houver um desfecho para esta queixa, Ana não se atreve a avançar com o outro processo relativo à casa e aos bens que eram comuns. “A pressão é muita e as despesas também. Como ganho acima de 750 euros, não tenho direito a apoio judiciário.” Enquanto isso, espera conseguir gerir o medo.

E a indignação perante o julgamento de que se sente também vítima. “Há muito preconceito, até nos tribunais: as pessoas pensam que a mulher deve aguentar, que se ele a persegue é porque ela lhe deu motivo. É sempre a mulher que é julgada. O homem pode fazer tudo, a mulher não pode olhar para o lado.

Eu não tenho de andar mal vestida ou mal arranjada nem tenho de andar com cara de vítima para que acreditem em mim. No entanto, as pessoas exigem-nos isso.”

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