Imprensa

Segredos de Estado…

Segredos de Estado…

Os pesados ‘calotes’ herdados pelos atuais responsáveis da banca pública, vulgo Caixa, ou do Novo Banco, pseudónimo do BES, são arrepiantes e prometem continuar a exigir um esforço assinalável aos contribuintes, este ano e nos próximos.

Perante o quadro negro – que adquiriu uma dimensão inusitada durante os governos socialistas de José Sócrates -, fica-se impressionado com a soma dos milhões desbaratados, mas não menos com a desfaçatez exibida pelos grandes devedores e gestores à época, que se passeiam impunes, na maioria dos casos, como se não fosse nada com eles.

O país ficou inquestionavelmente mais pobre com o afundamento de bancos e de grandes empresas, algumas delas com cotação internacional, que chegaram a brilhar com fama de visão rasgada.

Uma após outra ficaram em ruínas, no meio das maiores perplexidades. Houve uma destruição de valor raramente vista, enquanto despontaram, aqui e ali, novos-ricos e se transferiram fortunas para poisos exóticos.

O que espanta é o aparente ‘encolher de ombros’ face à leviandade – ou ao comportamento danoso – de várias atores, que voltaram à cena ou estão confortavelmente sentados atrás da cortina, sem que ninguém os importune.

Nos EUA, o tristemente famoso Bernard Madoff, que chegou a presidir à bolsa tecnológica Nasdaq, foi preso, julgado e condenado em menos de um ano, por causa do escândalo financeiro que abalou Wall Street e deixou milhares de clientes lesados – entre fundos de investimento, entidades de caridade e, até, celebridades de Hollywood.

Madoff confessou em tribunal e, antes de lida a sentença, assumiu perante os juizes deixar «um legado de vergonha». Mas não comoveu ninguém.

Por cá, desde agosto de 2014 quandoa resolução do BES foi anunciada pelo Banco de Portugal – aguarda-se que o Ministério Público e o banco central façam e finalizem o seu trabalho.

Basta consultar a Wikipedia para verificar que, à data da resolução, já uma auditoria ao BES reiterara uma «gestão ruinosa» no banco, em detrimento dos depositantes, investidores e demais credores, e que tais atos teriam sido «praticados pelos membros dos órgãos sociais».

Cinco anos depois, é anunciada outra auditoria e continua tudo em ‘banho Maria’, exceto por parte do principal protagonista, que já se permitiu fundamentar uma petição no Tribunal do Comércio contestando a falência culposa do BES, na qual endossa as responsabilidades pelo colapso ao então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, além do BdP.

Para Ricardo Salgado, a melhor defesa passou a ser o ataque, aproveitando-se da morosidade da Justiça, enredada nas suas teias e contradições, e incapaz, até hoje, de sentá-lo em tribunal.

Depois de Vara ter jurado inocência na TVI, em vésperas de dar entrada no estabelecimento prisional de Évora, foi agora a vez de Ricardo Salgado desfiar o seu rosário aos microfones da TSF, e derramar piedosas lágrimas, pensando «todos os dias nos lesados do BES».

Como diria na SIC o comentador e conselheiro de Estado Marques Mendes, «no fundo trata-se de um grande descaramento».

Na verdade, ao contrário de Madoff, não se pressente em Ricardo Salgado a menor vontade de assumir «um legado de vergonha», exibindo, pelo contrário, uma aristocrática soberba perante as sequelas da sua atividade de banqueiro.

Entretanto, a Justiça enrola e empurra o caso ‘com a barriga’. Convenhamos que cinco anos é demais.

Em fim de carreira, Jerónimo de Sousa promete não «calçar as pantufas» – e, coerente com a doutrina comunista, veio repor a nacionalização do Novo Banco na ordem do dia.

Não é algo que seja inovador no seu discurso. Por esta altura, em 2016, já preconizava a mesma solução, bem como a «renegociação da dívida».

Em relação à dívida, tanto o PCP como o Bloco meteram a ‘viola no saco’ para não assustar os eleitores. Já quanto à nacionalização da banca, os comunistas não desarmam.

O certo é que os contribuintes continuam a ser chamados a cobrir o descalabro do antigo BES, e não menos para remendar os enormes buracos do banco público.

Segundo números divulgados pelo BdP, em abril do ano passado o Estado foi chamado a contribuir com mais de 17 mil milhões de euros de apoio ao sistema financeiro, no período compreen

dido entre 2007 e 2017, que «tiveram um impacto acumulado neste período de 9,1% do PIB no défice».

A maior fatia destinou-se ao Novo Banco (ex-BES), ao ex-BPN e ao Banif, além da CGD. De então para cá, a sangria dos contribuintes ainda não terminou.

Responsáveis? Estão em parte incerta… Como nos incêndios de Pedrógão, no roubo de material de guerra de Tancos ou na estrada colapsada de Borba. Algures entre o ‘segredo de Justiça’ e o ‘segredo de Estado’…

Nota em rodapé – Era fatal. Foi aprovado o orçamento milionário exigido pela ‘Comissão Cravinho’ para pagar os pareceres pedidos sobre a regionalização a ilustres jurisconsultos, sendo o mais avultado o de Freitas do Amaral. O conselho de administração do Parlamento cedeu depois de ter chumbado o gasto, obedecendo «a ordens de cima», segundo o Expresso. Leia-se, direções partidárias do PS e do PSD, ambas desejosas de ‘mandar às malvas’ o resultado do referendo e de ‘regionalizar’ para dar mais espaço aos caciques locais. Outra vergonha.

Nota em rodapé 2 – Depois do telefonema de Marcelo, e dos cozinhados de Assunção Cristas, foi a vez de António Costa se deslocar aos estúdios da SIC para participar num programa de entretenimento, de avental, a exibir os seus dotes culinários, acompanhado da família.

Aguarda-se que a apresentadora convide agora Rui Rio, Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa, provando que não são menos na cozinha e que adoram estar à roda dos tachos!… Eleições oblige…

Nota em rodapé 3 – De acordo com um trabalho publicado no Expresso, Portugal tem 95 políticos (!!!) a comentar nos media.

É uma originalidade sem paralelo em nenhum outro sitio, na Europa ou nos EUA.

Estes incansáveis ‘pastores’, que procuram manter o ‘rebanho’ obediente no carreiro, são pagos para isso na maior parte dos casos, embora ninguém se descosa sobre os valores em causa, incluindo os que estão contratados pelo Grupo Balsemão.

Este ‘assalto’ de políticos aos media é visto como um ‘efeito Marcelo’, considerado pioneiro no género. Quem sabe se a concorrência assanhada não explicará o a fã mediático presidencial, que insiste em aparecer todos os dias nas televisões, sem deixar nada por comentar…

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PGR quer vítimas ouvidas por juiz logo após a queixa

PGR quer vítimas ouvidas por juiz logo após a queixa
Ana Dias Cordeiro

A procuradora-geral da República, Lucília Gago, disse ontem que deve ser encarada "a possibilidade de declarações para memória futura" das vítimas no âmbito de inquéri…

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Violência doméstica: o luto continua

Violência doméstica: o luto continua

Amilcar Correia

Um dia após mais um homicídio de uma mulher, a 11.ª con?rmada desde o início do ano, passamos da importância do simbólico à importância do acto. Ontem, o Governo propôs criar tribunais especial…

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Onze mulheres mortas. O que fazer para acabar com isto?

Onze mulheres mortas.

O que fazer para acabar com isto?

Não são vítimas, mas têm uma palavra a dizer. De Boticas a Faro, oito mulheres falam na primeira pessoa sobre o que é preciso para pôr fim ao problema.

Hoje é o Dia Internacional da Mulher

Rita Marques Costa

Desde o início do ano, 11 mulheres – mais uma criança de dois anos e um homem – perderam a vida às mãos dos parceiros, ex-companheiros ou familiares. A vítima mais recente, Ana Paula, de 39 anos, foi morta pelo marido em Vieira do Minho, distrito de Braga, a 6 de Março, véspera do primeiro dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica, que se assinalou ontem. O que se pode fazer para pôr fim ao flagelo? Foi esta a questão que levou o PÚBLICO a percorrer mais de 1500 quilómetros, de norte a sul do país, para ouvir as propostas de oito mulheres com diferentes pro?ssões e histórias de vida distintas. Sugerem mais educação e mais atenção de todos aos sinais de relações abusivas.

Pedem que se ouça mais as mulheres e que a justiça seja mais eficaz.

Em 2018, a PSP e a GNR receberam 26.439 queixas de violência doméstica. Mais de 800 suspeitos foram detidos (mais cem do que em 2017). A maioria das vítimas são mulheres. Hoje celebra-se o Dia Internacional da Mulher.

“Os homens têm muito que aprender”

Mafra

Aldina Catarino, 58 anos

Dona de um café

O meu pai iniciou a actividade com uma taberna e uma mercearia. Os homens, por nada, batiam nas mulheres. Era horrível. O que ouvia dos meus pais era que a separação era impensável, porque era uma vergonha e ninguém aceitava. As mulheres tinham de se sujeitar a viver com eles até ao resto da vida. Eu ouvia os meus pais dizerem que aquela levou pancada a vida toda.

Com o tempo, noto que o homem evoluiu muito pouco. Continua a ser muito machista, muito egocêntrico, eles é que sabem, eles é que mandam.

Só que a mulher mudou. Já trabalha, já tem opinião, gosta de gerir a casa de outra maneira, gosta que o marido ajude.

A minha televisão está quase todo o dia a dar futebol. O telejornal mudase logo. Não estou a dizer que eles não achem mal isto acontecer, mas depois começam a dizer: “Então, mas o que é que ela fez para merecer isto?” Claro que deve haver um ou outro que acha que não precisava de chegar a tanto… Não faz parte do dia-a-dia destas pessoas ver estes temas. Fora o futebol, é muito raro estarem atentas a outro tipo de coisas.

Também não ouço muito os homens no café a falar de violência doméstica. Quando estão todos juntos, é para beber. Quando falam nas mulheres, falam nelas para seu uso e para prazer e não por respeito. O tema principal não é esse.

Noto muito que o homem ainda é “eu é que mando” e a mulher está sempre em segundo plano. Conforme eles querem, da maneira que eles querem. A mulher é “aquela”, é a “minha”. Um bocadinho tratada assim…

Isto é uma aldeia e os homens ainda têm muito que aprender nesse aspecto. As mulheres, depende… Vivem aqui e também ainda não são muito independentes. “O homem tem sempre a última palavra e a gente tem de se calar.” Ouço uma ou outra dizer isso e não quer dizer que não estejam revoltadas, mas não têm coragem de se divorciar… Também devem ter vergonha da família.

Acho que isto devia mudar e nós, cidadãos, devíamos estar mais atentos a estas situações e denunciar.

Devia haver mais denúncia sem medo. E as autoridades deviam ter um peso diferente e penalizar mais as pessoas para que isto não aconteça.

É nestas classes sociais, mas também nas outras.

“Não podes dizer ‘não consigo’. Não penses ‘não consigo'”

Seia

Lúcia Pessoa, 36 anos

Produtora de queijo

Temos aqui um meio muito pequeno e, por vezes, a mulher prefere sofrer.

Para ela, quase é uma vergonha, porque as pessoas vão criticar. Por vezes, ela esconde-se porque tem vergonha de estar a passar por isso. Neste meio nota-se muito isso. Que as pessoas falam, que criticam… Acredito que existem muitas mulheres que sofrem e que não fazem nada com esse receio. Mesmo jovens. Acredito que há mulheres que preferem sofrer para não dar que falar.

Uma mulher, quando passa por isso, tem de ser forte e dizer basta.

Tem de tentar ter alguém por perto para dar apoio. Sozinhas não conseguimos ultrapassar. Mas há casos e casos. Muitas mulheres não conseguem ser fortes. Depois começam a pensar no medo…

Também há mulheres que não conseguem ultrapassar a situação por terem filhos. Depois ficam a pensar “como é que eu vou conseguir viver só com o meu ?lho”, e vivem uma vida de sofrimento. Temos de pensar:

“Eu vou conseguir e mereço ser feliz.”

Ninguém merece ser infeliz.

Por vezes digo à minha família:

“Não podes dizer ‘não consigo’. Não penses no ‘não consigo’. Não ponhas lá o ‘não’ e vais ver que vais ter bons resultados.” Muitas vezes digo isso à minha ?lha. Tem sido assim.

“A escola tem um papel importante”

Alcanena

Ana Cláudia Cohen, 50 anos

Directora do Agrupamento de Escolas de Alcanena

Sou mãe de três ?lhas. Acho que as mulheres são muito corajosas. É muito importante deixar vir ao de cima essa coragem e esse amor todo que têm sempre para dar. E não têm de ter medo. Têm de ser assertivas e dizer do que é que gostam e do que é que não gostam. Isso faz parte da vida, nós temos opções… Exprimir um afecto de forma saudável e não deixar que o outro exerça o pseudoafecto e o pseudo-amor de forma violenta e agressiva. Seja ela psicológica ou outra qualquer.

Questiono como é que é possível, com tanta informação, no século XXI, termos chegado a uma situação destas. Muitas vezes já houve tantos episódios antes e a pessoa continua a acreditar e a deixar-se ir. Enquanto mulher, o nosso papel é outro. Temos de saber dizer não e mostrar aos nossos filhos o que é uma relação saudável. Isso é um dever nosso. Quando mostramos só aquilo que é tóxico, naturalmente que os modelos se vão replicar. Estamos também a comprometer a vida deles. Temos de ser assertivos.

Nas escolas, sentimos que os alunos e as crianças trazem essas vivências cá para dentro. É muito frequente vermos algo que nos diz que houve violência sobre o aluno. E não precisa de ser física, pode ser psicológica ou violência na linguagem.

Às vezes, até a forma como os alunos falam connosco é sintoma de que em casa as coisas não correm da melhor forma.

A escola tem um papel muito importante nestas situações. Não só na sinalização mas também em duas vias: a prevenção e a remediação. Há dez anos, era tudo remediação. Acontecia um caso e íamos tratar. Depois, havia um aluno que era mais violento e aplicávamos as medidas sancionatórias. Andávamos sempre a remediar. Neste momento, não. Já há um plano de acção concertado que também tem que ver com o programa de educação para a saúde e com o desenvolvimento da cidadania activa.

Formar os médicos

Coimbra

Teresa Almeida Santos, 53 anos

Directora do serviço de Medicina da Reprodução no Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra

Temos de ensinar toda a gente. É a primeira coisa. E não é só a educação das crianças na escola, é a de todos nós. E se aumentarmos o conhecimento, a literacia, o awareness, todos estaremos mais atentos. Tal como é preciso formar as forças policiais e assistentes sociais, seguramente também é preciso chamar a atenção dos médicos para este problema. Nós estamos habituados a lidar com a doença física, mas não com o malestar psicológico.

Claramente, nos cursos de Medicina também deverá haver um alerta para estas situações. Não diria que seja uma unidade curricular do curso, mas que faça parte de unidades curriculares transversais, de comunicações, de conferências, palestras, seminários… O que for para chamar a atenção dos jovens médicos também para este problema.

Os médicos, particularmente os de Medicina Geral e Familiar, que conhecem melhor as pessoas e o seu desenvolvimento, têm de ter tempo de consulta e serem eles a chamar o problema. Não para perguntar directamente se a pessoa é vítima, mas para tentar perceber se está tudo bem e se há alguns sinais físicos ou até psicológicos que possam depois levar a uma investigação mais aprofundada. Mas claramente aí tem de ser o médico a procurar. Senão, muitas coisas vão ficar por dizer. Muitas passam por depressões, ansiedade, stress, problemas laborais, mas o que está no fundo se calhar não é isso… Se eles não falarem disso, as pessoas também di?cilmente o revelam. Até porque têm vergonha, é um tabu, têm medo de represálias.

Sei que há muitas mulheres que sofrem em silêncio durante muitos anos e que não têm abertura nem facilidade para se queixar. Porque dependem economicamente dos maridos ou dos parceiros, porque têm medo de que se se queixarem seja pior. Tem de haver estratégias para apoiar estas pessoas. É inacreditável que se morra vítima de violência doméstica. Não pode ser. É preciso fazer alguma coisa muito rapidamente. Só posso sentir vergonha.

Se as mulheres sentirem que há uma rede social de apoio, acho que vão deixar de ter medo. O facto de sofrer em silêncio também é ser corajoso. É preciso coragem para sofrer em silêncio. É preciso dizer que isto não é banal, não é normal, não pode ser escondido. Vocês têm o direito, como todas as outras pessoas, a ter paz e tranquilidade em casa.

“É preciso estar atento”

Lisboa

Magda Cruz, 20 anos

Estudante de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social

Chegou a uma altura em que, sim, tive conhecimento de um caso. A nossa reacção foi chamar nomes ao rapaz.

Ele ficou em choque logo a seguir, mas não fez nada quanto ao assunto, e uma colega é que a levou ao hospital. Depois, ela andava a meter maquilhagem na cara. Acho que foi o contexto. O “deixa-me ver o teu telemóvel”.

O que se diz? “Isso não te está a fazer bem. Olha que não mereces.”

Parece cliché, mas no caso não funcionou e pelo menos agora até parecem mais felizes. Mas é o parecer…

Vamos mantendo um olho. No contexto havia álcool, mas isso não justifica nada.

Aqueles que têm a sorte de estar fora do acontecimento devem pegar na voz que têm e ir para a rua. É estarem informados e informarem os outros. Depois disso, conseguem tomar decisões muito mais responsáveis. E ver: “Eh pá, onde estou a meter-me? Se calhar não é bem isto que quero para a minha vida. É melhor ver todos os ângulos… Não é por este homem não me querer ou não me tratar bem que a minha vida acaba.” A vida até começa é agora. Aí é que a vida se torna mais entusiasmante, e não se pode deitar isso fora à pala de uma relação má.

Acho que tendencialmente estes casos acontecem com pessoas mais velhas. É um pouco estranho para mim. Nunca me aconteceu. Não sei se poderá vir a acontecer, mas é estar atento. Não sei como lidar com isso na primeira pessoa. Estando de fora e a ver de longe, acho que o mais correcto é tentar falar com ambas as partes. Tentar saber o que aconteceu e, se permanecer, avançar com a polícia…

Na faculdade, o tema vem à baila no sentido de como é que nós, futuros jornalistas, podemos abordá-lo.

Como é que se pode contar as histórias dessas pessoas? Vamos tentar fazer isso na manifestação de dia 8.

Procurar histórias que não foram contadas ou não foram tão aprofundadas na perspectiva de consciencializar as pessoas do que é a violência doméstica.

Violência gera violência

Faro

Ester Serrão, 52 anos

Investigadora no Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve

Pelo menos nos contextos de violência doméstica de que tenho tido conhecimento, vê-se que há um certo determinismo que tem que ver com o contexto em que as crianças crescem. Se vêem estes exemplos em casa, como é que podem aprender outra coisa? Era importante que existissem formas de alterar este círculo vicioso. Os modelos com os quais as crianças se identificam têm de ser diferentes. Não podem ser violentos.

Tem de haver este princípio muito rigoroso que é: não há agressão.

A principal sensação que tenho é que os agressores também são vítimas do contexto em que cresceram. Se tivessem tido um desenvolvimento harmonioso… Eu pensava muito isso nas escolas nas quais integrei associações de pais. Por exemplo, uma criança que agride também é vítima muitas vezes, porque pode estar com imensos problemas.

Devia haver uma consciencialização de toda a gente de que, por muito que as pessoas se descontrolem e estejam zangadas e percam a cabeça, não pode haver este tipo de actuações. Isso parte da educação.

É preciso formar as famílias. A educação é a solução para muitos males da nossa sociedade. Quando as famílias vão ter o primeiro ?lho, há uma série de formações sobre como é que se dá o banho ao bebé, por exemplo.

Pois é muito importante fazerem, também, formação sobre atitudes. O que fazer quando há desacordos, quando há maus comportamentos, quando vêem violência?

“Temos de nos aplicar mais”

Mora

Susana Esteban, 49 anos

Produtora de vinhos

Todos os anos há casos de violência doméstica em Espanha (o país onde nasci). Não tem vindo a decrescer, não é um problema que esteja solucionado, e acho que não está em vias de ser solucionado. Infelizmente, é um problema que existe em Espanha, como também existe em Portugal. É muito grave e é incompreensível como é que ainda continua a existir.

Faz-me imensa confusão. Nunca conheci alguém que tivesse sofrido este tipo de violência. Não sei o que seria capaz de dizer.

Aliás, é difícil dizer o que fazer para lidar com este problema. A educação é importante. Temos de nos aplicar mais nessa parte. Mas, tirando isso, sinceramente não tenho mais respostas e não sei se há muitas pessoas que as tenham.

Na minha área (enologia) nunca senti discriminação por ser mulher.

Mas é um mundo masculino. Em 20 anos já podiam ter aparecido muitas mais mulheres enólogas. Estou sempre a dizer que gostava que houvesse mais mulheres. Eu sou a única com o prémio enólogo do ano e foi em 2012 – já passaram sete anos e ainda não deram a mais nenhuma mulher.

“O requerido deu um tiro na requerente”

Boticas

Guida Vaz Nunes, 67 anos

Advogada

Vim do Brasil para Portugal nos anos 80. A minha primeira cliente em Boticas foi um caso de violência doméstica. Ela tinha um marido que não fazia nada e ela sustentava toda a casa. Os filhos e as irmãs achavam que ela tinha de dar o basta naquilo. Veio falar comigo para eu tratar do divórcio.

Também tinha já uma queixa-crime porque ele ia para a porta da escola tratá-la mal e injuriá-la a dizer que andava amantizada com outro funcionário… Fui pedir um arrolamento dos bens porque ela queria as coisas que tinha deixado em casa. Pedi aquilo como preliminar do divórcio e chego toda contente no tribunal, que era aqui em frente, e disse ao funcionário: “Vamos fazer o arrolamento!” Ele virou-se e disse: “Ó doutora, não há arrolamento. O requerido deu um tiro na requerente. O requerido fugiu e a requerente está no hospital.” Eu achei que ele estava a gozar, porque estava cá há pouco tempo, mas era mesmo verdade. Naquela altura não se falava como se fala hoje em violência doméstica. Foi uma coisa que marcou muito.

Eu tenho muita admiração por aquelas mulheres que são capazes de deixar tudo para trás. No tempo da minha mãe, eu entendia que uma mulher aceitasse este tipo de coisas.

Não tenhamos dúvidas de que as mulheres estão melhor em Boticas agora do que há 20 anos. Eu tinha pessoas que só vinham procurar-me por eu ser advogada brasileira. Também sei que muita gente não me procurava por eu ser mulher. Não era tanto pelo facto de eu ser brasileira. Diziam mesmo: “Ela é mulher, ela não presta.” Isso sei eu. Disseram-me muitas vezes.

Acho que a grande mudança que podemos conseguir tem de ser através do barro que temos na mão: as crianças e os jovens.

Eu fico doida quando vejo que não sei quantos jovens admitem que sofreram violência no namoro. Pelo amor de Deus! Eu não admito que soframos de violência no namoro. Se sofrermos de violência no namoro, vamos sofrer de quê no casamento?

Tem de se dar educação.

Penas mais pesadas? “Não é esse o caminho”

Foi sua a sugestão de que se assinalasse, pela primeira vez, um dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica. E na Presidência do Conselho de Ministros, como em vários outros locais, fez-se ontem um minuto de silêncio, dia em que o Governo aprovou um conjunto de recomendações para lidar com este crime e garantir mais apoio às vítimas. As propostas, diz a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Mariana Vieira da Silva, serão agora analisadas por uma equipa técnica multidisciplinar liderada pelo procurador Rui do Carmo. Em três meses, deverá apresentar medidas.

Muitas mulheres têm morrido em contexto de violência doméstica. O que fazer para acabar com isto?

Uma das coisas que é preciso é conhecer os números ao detalhe, e essa é uma das missões da comissão técnica multidisciplinar criada recentemente. Quando olhamos para os dados dos últimos anos, veri?camos duas coisas: de há dez anos para cá houve uma redução, mas depois houve uma estabilização dos números. Temos alargado a rede de apoio a estas famílias e temos experiências muito bem-sucedidas, mas também problemas de relação entre os diferentes intervenientes do processo. Sejam as forças policiais, seja a rede nacional de acompanhamento, seja o Ministério Público. O nosso foco é melhorar essas interligações. Coisa que se faz com troca de informação, com a harmonização de conceitos e com a criação de plataformas comuns. Por outro lado, os relatórios também identi?cam [como problemática] a questão do apoio nas primeiras 72 horas após a apresentação da queixa da vítima por violência doméstica. Vai ser sobre essas 72 horas que procuraremos agir.

Um dos anúncios do Governo relaciona-se com a criação de gabinetes de apoio às vítimas nos Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP). Mas nem todos terão condições para isso, em especial os que abrangem grandes áreas populacionais.

Assinámos protocolos com a ministra da Justiça e organizações não governamentais para alargar esses gabinetes a mais seis DIAP. A capacidade de alargamento depende de eles terem equipas específicas para esta área. A ideia é não parar por aqui.

A secção do DIAP de Lisboa especializada na violência doméstica tem, neste momento, três procuradores ao serviço. Só um deles é perito neste crime.

Temos noção de que existe uma carência de especialização, por isso a prioridade é formar e especializar mais pessoas. A comissão técnica multidisciplinar ficou de assegurar que a formação aos intervenientes nestes processos tenha módulos comuns aos magistrados, às forças policiais e à rede de apoio às vítimas.

Através dos fundos comunitários teremos 6,5 milhões de euros para formação específica.

O procurador que no Tribunal de Almada trata destes crimes tem 600 processos em mãos.

Pode ser responsabilizado se num deles ocorrer um homicídio?

A perspectiva não é de responsabilizar individualmente os intervenientes. O sistema de sinalização de vítimas também tem de permitir aferir da gravidade de cada queixa, nem todas são iguais.

Existem classificações que permitem diferenciá-las. O acompanhamento que se segue à queixa deve seguir também esse nível de gravidade.

Em Espanha este tipo de agressores passou por regra a ser preso preventivamente. Será um caminho a seguir?

Segundo a generalidade dos relatórios [de avaliação], o quadro legal que temos é o adequado, possuindo os mecanismos necessários para afastar o agressor da vítima. Não temos prevista neste momento nenhuma mudança nessa área.

Mas já admitiu fazer mudanças cirúrgicas na lei.

Não quer dizer que a equipa de trabalho multidisciplinar não venha a sugerir algumas dessas alterações. Mas a nossa ideia é a de que o quadro legislativo é robusto, não carece de nenhuma medida fundamental. Uma das coisas incluídas na resolução aprovada em Conselho de Ministros é a possibilidade de viabilizar, no quadro da nossa Constituição (que proíbe tribunais especializados por crime) soluções destinadas a permitir que, num mesmo tribunal de competência mista, possam ser julgadas matérias de responsabilidade parental, violência doméstica e maus tratos.

Está portanto posto de lado um endurecimento das penas, como defende o CDS?

Na perspectiva do Governo, não é esse o caminho. As penas existentes são as adequadas para responder ao problema.

É comum as vítimas contarem o que lhes aconteceu quando apresentam queixa na esquadra mas mais tarde não o fazerem perante magistrados judiciais. E a lei só permite validar estas declarações iniciais para efeitos de julgamento com o consentimento do arguido. Não será preciso alterar esta disposição legal?

Estão a ser estudadas medidas para que o registo inicial dessa queixa seja mais completo e possa passar a ser usado [em tribunal].

Outro problema é a retirada de pulseiras electrónicas a condenados por violência doméstica por os juízes terem fundamentado mal a sua aplicação.

A lei tem potencialidades para resolver o problema. A formação dos magistrados neste tema é muito importante.

Surpreendeu-a a dimensão que ganhou o caso do juiz Neto de Moura?

Resulta da crescente consciencialização da sociedade portuguesa em relação a este crime e da menor tolerância relativamente a discursos passados, antigos. Estamos a assistir a um maior escrutínio das decisões e a uma sociedade que evoluiu, o que é positivo. Mas também sabemos que ainda há trabalho a fazer, por exemplo na questão da violência no namoro e na forma como nas gerações mais jovens ainda persistem práticas que já podiam estar ultrapassadas.

Se fosse vítima de violência doméstica, sentir-se-ia segura caso o seu processo fosse parar às mãos do juiz Neto de Moura?

O facto de termos criado uma equipa para analisar os casos que correram mal deve servir para corrigir, mas não para desvalorizar toda a rede de acompanhamento.

Quando uma mulher apresenta queixa, deve sentir-se segura, porque na generalidade dos casos corre bem. E a confiança no sistema é fundamental para que as mulheres se queixem. No resto do debate não vou entrar. Nos últimos anos aumentámos o orçamento da rede de protecção das mulheres, que era cerca de quatro milhões e agora passou a cerca de seis.

Aumentámos o número de casas-abrigo e de formas de atendimento. Houve 11 mil atendimentos no ano de 2017 e isso significa que estas mulheres tiveram uma resposta.
abhenriques@publico.pt

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