SÁBADO, 26-10-2021 por Paulo Lona, Secretário-Geral do SMMP
A Justiça e as não prioridades do executivo (Orçamento de Estado e o Plano de Recuperação e Resiliência) que reforçam a necessidade de uma autonomia financeira efetiva enquanto garantia de uma independência real do Ministério Público perante o executivo.
As mais recentes notícias vieram trazer a púbico a escassez da verba destinada, no orçamento de estado e no plano de recuperação e resiliência, para “investimento” no Ministério Público e, por essa via, demonstrar (se tal ainda fosse necessário) a necessidade de o Ministério Público, através da Procuradoria-Geral da República, ser dotado de uma autonomia financeira real e efetiva que não o torne dependente da boa vontade do poder executivo.
Tinha aqui escrito que depois de conhecido o orçamento de estado ficaríamos a saber até que ponto a justiça é (ou não) uma prioridade para o poder executivo, bem como se este pretende (ou não) dar resposta às necessidades prementes do Ministério Público e, também, por essa via, combater o fenómeno da corrupção.
Infelizmente os receios manifestados vieram a confirmar-se.
Como recentemente tornou público o diretor do departamento central de investigação e ação penal, organismo no âmbito do qual são objeto de investigação os processos de corrupção económico-financeira mais complexos e que envolvem, necessariamente, sob pena de ineficácia, a atempada mobilização dos mais variados recursos materiais/técnicos e pessoais, as verbas de que dispõe este departamento estão a anos-luz das suas reais necessidades.
Para a justiça está prevista uma verba que ronda os 270 milhões no plano de recuperação e resiliência (a denominada “bazuca” europeia).
Para percebermos as prioridades apresentadas pelo poder executivo no que ao setor da justiça diz respeito basta atentar no destino das verbas que este plano apresenta (mais do que nas palavras é nas ações que devemos atentar).
A Procuradoria-Geral da República (o DCIAP é um organismo dependente da PGR) recebe 1 milhão de euros, a Secretaria Geral do Ministério da Justiça recebe 4,6 milhões de euros, a divisão de estatística recebe 26,3 milhões de euros e o instituto de gestão financeira e equipamentos de justiça recebe o montante de 243 milhões.
Esta distribuição de verbas é reveladora das prioridades do executivo para o sector da justiça e demonstra bem – numa proporção de 1 para 270 – que ao Ministério Público e à Procuradoria-Geral da República estão reservadas pequenas migalhas do bolo.
O poder executivo em vez de procurar ouvir e dotar o Ministério Público dos meios indispensáveis (humanos e materiais), como titular da ação penal, para o combate efetivo à corrupção e criminalidade económico-financeira, prevendo as verbas indispensáveis para tal no orçamento de estado e no plano de recuperação e resiliência, prefere falar em “estruturas redundantes” e “desperdícios” (sem concretizar a que se refere e esquecendo que foi este mesmo executivo a aprovar o atual estatuto do Ministério Público), desvalorizando, ao mesmo tempo, todos os “alertas” que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Púbico tem deixado nos últimos anos (desvalorizados como “queixumes de setores sindicais”) e que, a terem sido atempadamente ouvidos (e levados a sério), poderiam ter evitado a situação de “pré-ruptura” em que o Ministério Público se encontra (constatável facilmente pelas vagas do quadro legal que não foram preenchidas no último movimento de magistrados do Ministério Público).
O Ministério da Justiça em vez de escutar prefere tapar o sol com a peneira.
Convêm recordar, perante comentários menos felizes, nomeadamente de membros do poder executivo nas redes sociais, que o Ministério Público é uma magistratura a quem o Estado entregou a titularidade de uma fase processual penal, a fase do inquérito. A ação penal e o exercício do poder do Estado na criminalidade grave económico-financeira, dado que não existe uma autonomia financeira efetiva da Procuradoria-Geral da República, dependem dos meios que o poder executivo decide (ou não) afetar ao Ministério Público.
A falta de recursos materiais e humanos é um problema transversal que atinge os vários intervenientes na fase processual penal do inquérito (o Ministério Público, os técnicos de justiça, as polícias, os laboratórios, os peritos etc…), fase na qual os crimes são investigados.
Na Polícia Judiciária a situação é igualmente claríssima e alinhada com as faltas de recursos do Ministério Público. Senão vejamos, de acordo com os dados da ASFIC, “a Lei Orgânica de 2000 previa um quadro de 1945 Inspetores, 300 Chefes e 190 Coordenadores, num total de 2435 elementos. No Balanço Social de 2020 existem 1090 Inspetores, 137 Chefes e 56 Coordenadores. Em 2021 existem menos 1152 investigadores do que os previstos para 2000! Apenas metade dos quadros da PJ estão preenchidos.”.
Não se compreende é a tentativa de desviar a atenção das carências existentes no Ministério Público (falta de magistrados, técnicos de justiça, instalações adequadas e condignas, equipamentos e sistemas informáticos modernos e que assegurem as indispensáveis ligações entre sistemas, software adequado etc…) centrando o discurso nos órgãos de polícia criminal e esquecendo, além do mais, que nem todas as investigações passam pelos órgãos de polícia criminal e que o Ministério Público é o titular da ação penal e os órgãos de polícia criminal atuam na sua dependência funcional.
O Ministério Público não precisa de recursos por si e para si, mas sim para – em nome da sociedade e do Estado – desempenhar as funções que constitucionalmente lhe estão atribuídas, nomeadamente o exercício da ação penal na criminalidade económico-financeira.
Mas, as reações do poder executivo (oficiais ou oficiosas) revelam que não existe uma real vontade de atribuir ao Ministério Público os meios para que funcione e combata eficazmente a criminalidade económico-financeira complexa.
O tão propalado combate à corrupção não passa então das palavras para as verbas orçamentadas.
Se a sociedade e o poder executivo pretendem um Ministério Público verdadeiramente eficaz na sua atuação impõe-se repensar o atual modelo de autonomia financeira da Procuradoria-Geral da República, que a coloca nas mãos da boa vontade alheia (a vontade do poder executivo).