JUSTIÇA IMPERFEITA
SÁBADO, 08-10-2019 por António Ventinhas

“O Conselho Superior do Ministério Público e a autonomia interna dos magistrados funcionam como formas de protecção de uma politização do Ministério Público efectuada de cima para baixo. ”


A organização e estruturação do Ministério Público não é igual em todos os países.

Na Rússia e nos antigos países da União Soviética, o Ministério Público tem uma estrutura militar, com patentes e fardas que se confundem com o exército.

Em muitos países de inspiração anglo-saxónica, o Ministério Público funciona com um regime de advogados contratados.

Na Europa há países em que os procuradores são meros funcionários do Ministério da Justiça, devendo obediência ao respectivo Ministro.

Em Portugal e em muitos outros países os procuradores são magistrados.

Qual a diferença entre os regimes?

Em Portugal, em vários aspectos,os procuradores têm um regime estatutário e de autonomia muito similar ao dos juízes

A configuração constitucional do Ministério Público português apela a um conceito de autonomia externa e interna.

A autonomia externa caracteriza-se pela independência face a outros poderes do Estado, designadamente o Governo.

No nosso País, o Ministério Público não actua de acordo com as ordens e orientações do Executivo.

Por sua vez, a autonomia interna concerne ao respeito pela actuação de cada magistrado individualmente considerado, designadamente não sofrer interferências na sua actividade, por via hierárquica, que não estejam previstas na Lei.

As duas dimensões da autonomia do Ministério Público têm uma especial relevância no nosso sistema, uma vez que a pessoa que ocupa o cargo de Procurador-Geral da República resulta de uma escolha política e até pode nem ser magistrado.

O Conselho Superior do Ministério Público e a autonomia interna dos magistrados funcionam como formas de protecção de uma politização do Ministério Público efectuada de cima para baixo.

Por essa razão, todos os que defendem um controlo político da instituição advogam alterações às competências ou composição do Conselho Superior do Ministério Público ou diminuição da autonomia interna dos magistrados.

A magistratura do Ministério Público é hierarquizada e por essa razão distingue-se da magistratura judicial.

No entanto, há que perceber como compatibilizar dois conceitos que aparentemente são antagónicos.

O conceito de magistratura implica liberdade para decidir sem interferência. Por sua vez, hierarquia apela a uma subordinação do subalterno perante o superior hierárquico.

Os magistrados do Ministério Público actuam em diversas áreas do Direito e, em muitos casos, como representantes do Estado.

Nos casos em que a sua actuação está mais próxima de um advogado, como por exemplo quando representa o Estado num processo de natureza civil em que este é parte, o magistrado do Ministério Público está sujeito a aprovação das peças processuais que elabora por parte do seu superior hierárquico.

No entanto, a realidade é substancialmente diferente quando o magistrado actua como autoridade judiciária no âmbito do processo penal.

A possibilidade de intervenção hierárquica nas investigações criminais é limitada.

O Código de Processo Penal define momentos específicos para que tal aconteça.

A pedido do arguido, do assistente ou das partes civis o Procurador-Geral da República pode determinar a aceleração de um processo atrasado.

Caso um magistrado arquive um inquérito, o superior hierárquico pode determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando neste caso as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento.

Se um magistrado se recusar a reabrir um inquérito na sequência de um requerimento do assistente, este último poderá reclamar para o superior hierárquico deste.

Os superiores hierárquicos também dirimem conflitos de competência e têm o poder de avocar os processos, ou seja, podem assumir a investigação e traçar a sua própria estratégia quando discordam daquela que está a ser seguida pelo procurador que a dirige.

Para além destes aspectos, os directores dos DIAPS e do DCIAP definem a distribuição do serviço entre os procuradores e, em alguns casos, têm um papel activo na escolha dos magistrados que integram os departamentos.

Apesar de terem os poderes que já referimos, a possibilidade de interferência dos superiores hierárquicos nas investigações criminais e no processo penal é limitada.

O superior hierárquico não pode dar ordens ao magistrado do Ministério Público titular de um inquérito para este acusar ou arquivar um processo contra determinada pessoa no decurso da investigação.

O mesmo não pode igualmente ter interferência nas diligências de produção de prova, isto é, não pode determinar ou impedir a realização de buscas ou intercepções telefónicas, a constituição de arguidos ou inquirição de testemunhas.

Encontra-se igualmente vedada a pré-aprovação de acusações ou rectificação substancial das mesmas por parte de alguns órgãos da hierarquia do Ministério Público e respectivos assessores.

Tenho conhecimento de atropelos a estas regras em departamentos de investigação criminal localizados em diversas zonas do País.

É preocupante que a autonomia interna dos magistrados seja fragilizada dentro da própria instituição que tem a obrigação de a defender.

No âmbito do processo de revisão do novo Estatuto do Ministério Público foi reafirmado, de forma explicita, em diversos artigos que a intervenção hierárquica só pode ser efectuada nos termos do código de processo penal, para que se afastem quaisquer dúvidas interpretativas.

Sem a autonomia interna dos seus magistrados, o Ministério Público português está condenado a transformar-se num corpo de funcionários. É pena que alguns hierarcas não percebam isso…

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