Pensamos que o nosso contributo sobre a discussão do problema das inspecções e das questões com elas relacionadas, designadamente o sistema de progressão na carreira, terá maior utilidade se abordar alguns aspectos centrais desse debate, sem se cingir estritamente à análise do projecto de regulamento proposto.O que merece observação é a eventualidade de poderem gerar-se erradas expectativas face ao novo regulamento. Ou melhor, de poder gerar-se a expectativa de que, com a elaboração deste regulamento, ficam resolvidos os problemas actuais do sistema de inspecções.
Nada seria mais falso e errado.
O sistema de inspecções e de progressão na carreira constitui neste momento um dos factores de maior desconforto e insatisfação entre os magistrados do Ministério Público e constitui pois um real e complexo problema, que deve merecer atenção cuidada do CSMP.
Propomos que a abordagem do problema seja realizada em dois planos.
Um primeiro plano é o de uma abordagem de curto prazo, que mais do que virada para a elaboração abstracta de normas, deve incidir sobre práticas, sobre procedimentos, a serem adoptados pelo corpo de inspectores e pela hierarquia e a serem discutidos nas várias instâncias de decisão do MP.
Insistimos designadamente em que o CSMP deve proceder:
• A um exaustivo esforço de coerência dos critérios de avaliação, prevendo designadamente a diversidade das condições de trabalho e a diversidade dos desempenhos funcionais a serem levados ao conhecimento prévio de todos os magistrados;
• A uma acentuação das condições pedagógicas e formativas da actividade inspectiva e de avaliação, designadamente favorecendo o debate sobre o desempenho funcional entre os inspectores e o inspeccionado;
• Ao estudo e eventual instituição de mecanismos integrados de auto avaliação, com relevância formal no processo e com carácter facultativo;
• À elaboração de um plano de inspecções que se dirija a objectivos programáticos, designadamente que visem a melhoria das condições gerais de funcionamento dos serviços do MP;
• À instituição, na prática, do procedimento de que nos dois primeiros anos de exercício de funções não há inspecções com objectivo de notação.
Mas ainda no domínio do curto prazo parece-nos absolutamente necessário instituir uma prática significativamente inovadora, que permita explorar uma nova perspectiva do serviço de inspecções, na compreensão de que a sua acção pode ter um papel relevante para o bom desempenho das funções institucionais que competem ao MP. Referimo-nos expressamente à necessidade de instituir desde já e com carácter regular a realização de inspecções dirigidas à avaliação do estado dos serviços do MP e designadamente do desempenho funcional dos seus magistrados, mas sem qualquer objectivo de atribuir classificações. Inspecções deste tipo impõem uma reflexão sobre as suas metodologias e poderão designadamente servir para fazer levantamentos rigorosos sobre a situação dos serviços, dotando o CSMP e a hierarquia de instrumentos fiáveis para o exercício das suas competências. Pode-se antecipar que inspecções desse tipo deverão ser realizadas por equipas de inspectores trabalhando em coordenação.
Num segundo plano, numa perspectiva de mais longo prazo, mas a iniciar de imediato, há que avançar na discussão sobre a raiz dos problemas causados pelo sistema actual de inspecções. Há que abrir caminho a alterações profundas, provavelmente mesmo a um sistema novo.
Não temos ideias acabadas, nem poderíamos ter, sobre o tema, mas esta matéria tem sido objecto de discussão no interior do SMMP, como aliás é de conhecimento público. O que afirmamos agora é mais uma base para discussão do que uma certeza de convicções.
Entendemos que o nó mais perverso sistema actual, factor essencial do mal estar entre os magistrados, resulta da associação de uma intenção classificatória daqueles, ordenando-os pela sua “qualidade ” e da atribuição de consequências directas na promoção e nas colocações a essa classificação.
O que acontece é que este modelo, esta pretensão classificatória, que marca de uma forma obsessiva o actual sistema, revela permanentemente as fragilidades dos seus pressupostos, na realidade as fragilidades inultrapassáveis dos seus pressupostos, métodos e fundamentos.
O primeiro factor e decisivo, que obsta à possibilidade de classificar e ordenar com objectividade suficiente e justiça a ” qualidade ” dos magistrados é que não é possível estabelecer um padrão inteiramente objectivo, ou sequer mesmo objectivo, das tipicidades humanas que fazem ” a qualidade ” dos magistrados.
Por mais esforços estatísticos, por mais preconceitos ideológicos, comportamentais, psicológicos, que se mobilizem para essa tarefa, sempre se defrontará uma situação duplamente contraditória e mesmo paradoxal.
Por um lado a ideia social do magistrado é uma ideia permanentemente em mutação e elaboração e as modificações sobre os conceitos sociais dessa actividade profissional têm sido particularmente profundos nas últimas décadas. Por outro lado as especificidades humanas pessoais, naquilo que não é quantitativamente mensurável, são, em última análise, insusceptíveis de comparação, sobretudo se o que está em jogo é uma actividade complexa, diferenciada e prolongada no tempo.
O segundo factor, e óbvio, é que não há duas condições objectivas, exteriores, de desempenho funcional, que se possam considerar iguais, ou, na maioria dos casos, sequer aproximadas.
Este facto, que é uma evidência, deveria por si só ter esvaziado de sentido toda a pretensão classificatória e de ordenação dos magistrados, pretensão que, nessas circunstâncias, assumia uma natureza puramente absurda.
Mas se o não fez por uma via directa, pois que tal prática prosseguiu em sua inevitável inércia, fê-lo por via indirecta.
Na realidade é esse o significado que deve atribuir-se ao conjunto de estratégias defensivas com que os magistrados aprenderam a lidar com uma situação ( a inspecção seguida de classificação ), que intimamente aparece a todos, em larga medida, como um jogo de azar. Mas é também esse o significado que têm as tendências para uniformização de classificações, ou em notas mais elevadas, ou em menos elevadas, que se manifestam com a natureza de onda periódica e regular nas instâncias de decisão.
Um sistema de classificação e ordenação como o actualmente em vigor não tem assim hipóteses de corrigir inteiramente, ou sequer de modo satisfatório, as características que o tornam tão controverso.
O primado do subjectivismo, a prevalência de critérios informulados ou até de pré juízos, a superficialidade, a valoração de aparências, a enunciação ritual e repetitiva de qualidades, a adjectivação palavrosa são a contrapartida da impossibilidade da existência de critérios objectivos de avaliação, não só porque nunca se tentou verdadeiramente encontrá-los, mas sobretudo porque é mesmo impossível encontrá-los.
A melhor demonstração de que há um ” não dito “, ” não formulado ” no jogo da inspecção é o conteúdo indefinível, mas que todos pensamos mais ou menos saber qual é, da expressão – ” trabalhar para a inspecção ”
Esconde-se nessa expressão o significado preocupante de que é possível simular como desempenho de funções aquilo que o sistema de classificação valoriza, o que por si só evidencia a generalizada ideia de que o sistema assenta na falsidade.
Se isso for conforme à verdade, a gravidade do facto não está tanto nas injustiças assim causadas, mas está sobretudo num outro aspecto mais indefinível e perigoso, a que talvez se possa aludir com a seguinte interrogação:
Qual a verdadeira natureza de práticas que condicionam ou tentam condicionar a progressão na carreira exigindo a assunção de um conjunto de simulações, de aparências, que podem nada traduzir ou revelar do verdadeiro desempenho funcional ?
E quais as consequências que podem ter a longo prazo para o Ministério Público essas práticas?
Por último, levamos à vossa consideração as sugestões e comentários que se seguem relativamente a aspectos concretos do texto do Projecto de Regulamento das Inspecções do M.P.:
O art.º 17, n.º 2 e n.º 3 – Sugerimos que se considere a possibilidade de eliminação dos nº.s 2 e 3 do art.º 17 por termos dúvidas quanto à necessidade ou utilidade de diligências complementares e de uma última informação por parte do inspector.
Consideramos que as informações prestadas pelo superior hierárquico, a que se refere o art.º 12, nº1, al. e), deverão constar expressamente do relatório de inspecção elaborado pelo inspector.
Salientamos como positivo o esforço de actualização das inspecções, nomeadamente através do conteúdo dos artº.s 4, n.º 2 e art.º 6, al.b). Contudo, alertamos para a necessidade de cumprimento rigoroso da ordem de antiguidade dos inspeccionados relativamente às inspecções ordinárias.
Salientamos o esforço positivo no sentido da definição de parâmetros e critérios objectivos de avaliação, designadamente através dos artº.s 14 e 20. Este esforço poderá abrir caminho á elaboração de um Código Deontológico, aliás, no seguimento das recentes recomendações do Conselho da Europa.
Sugerimos que se preveja expressamente um prazo para a homologação das notas.
Alertamos para a necessidade de elaboração de critérios objectivos para a selecção e nomeação dos inspectores.
Alertamos para a necessidade da formação dos inspectores para as inspecções nas jurisdições especializadas, designadamente nos tribunais administrativos e fiscais.
Lisboa, 1 de Outubro de 2001
A Direcção do
Sindicato dos Magistrados do Ministério Público