JUSTIÇA IMPERFEITA
SÁBADO, 17-09-2020 por António Ventinhas

A admissão do erro, a explicação da motivação do crime e como foi cometido são muito relevantes para a descoberta da verdade, mas também para a determinação da medida concreta da pena a aplicar.

Ao longo dos tempos a confissão sempre foi encarada como a rainha das provas. Como regra, se alguém é acusado de um crime e confessa o mesmo, tal evidencia de forma clara que os factos que lhe foram imputados correspondem à verdade. A admissão do erro, a explicação da motivação do crime e como foi cometido são muito relevantes para a descoberta da verdade, mas também para a determinação da medida concreta da pena a aplicar. Em muitos casos, a confissão demonstra arrependimento e que a conduta resultou de um acto irreflectido. Esta tem de ser feita de livre vontade e sem reservas e é aceite pelo nosso sistema processual penal. O artigo 344º do Código de Processo Penal estabelece o regime aplicável ao arguido que confesse em audiência de julgamento. Para a confissão poder valer em julgamento, a mesma tem de ser integral e sem reservas e o juiz que dirige a audiência tem de se certificar que foi feita sem qualquer coacção. A confissão implica a renúncia à produção de prova relativa aos factos imputados e consideração dos mesmos como provados, passando-se à fase das alegações orais e determinação da sanção aplicável. Se o tribunal suspeitar da veracidade da confissão determina a continuação da produção de prova para apurar a verdade. Os juízes portugueses têm uma extrema preocupação em aferir da credibilidade das confissões, uma vez que estas podem esconder os verdadeiros culpados pela prática do crime. O nosso legislador limita a renúncia à produção de prova, como resultado de uma confissão, somente aos crimes punidos com pena inferior a 5 anos de prisão, o que restringe muito o valor da confissão relativamente à criminalidade económico-financeira, atento o facto desses crimes serem punidos de forma mais grave. Por outro lado, existem algumas limitações quando vários co-arguidos estão acusados e uns confessam e outros não. Há que valorizar mais a confissão dos arguidos em julgamento, pois tal facto contribui para a descoberta da verdade material e permite aumentar a celeridade da decisão. É óbvio que se nos grandes julgamentos não for necessário produzir prova relativamente aos arguidos que confessarem, aqueles terminarão mais rapidamente. O que acontece hoje é que mesmo que os arguidos confessem crimes graves de forma espontânea, os julgamentos têm de prosseguir durante meses para demonstrar esses factos, o que é difícil de explicar ao cidadão comum.

Em Portugal, há uma grande desconfiança em relação à prova obtida através da confissão. O facto da inquisição ter sido bastante activa no nosso País, bem como a circunstância do século XX ter sido dominado por um regime autoritário em que a polícia política recorria à tortura para obter confissões, explica tal facto. Hoje, numa democracia consolidada, a prática  é outra. A tortura não é aceite pela sociedade e as confissões só são valoradas desde que estejam cumpridas várias formalidades que passam desde logo pelo facto do arguido estar acompanhado pelo seu defensor. A partir de 2013, fruto de uma alteração legislativa, verificou-se uma valorização da confissão em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido. Durante muito tempo, se um arguido confessasse perante o Juiz de Instrução Criminal que matou alguém, essas declarações não poderiam ser valoradas em audiência de julgamento se posteriormente resolvesse não prestar declarações. Devido a esta regra absurda muitos homicidas conseguiram ser absolvidos, apesar de existir uma confissão escrita do arguido no processo. Quando esta norma foi discutida houve quem tivesse dito que representava um regresso ao regime da Pide, mas já decorreram vários anos e hoje não suscita qualquer problema. Importa dar mais um passo e melhorar o regime da confissão em julgamento, o que não implica uma revolução no nosso sistema, mas apenas um aperfeiçoamento.

O Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados tem manifestado a sua preocupação caso o Governo pretenda que o julgamento siga o regime vigente nos Estados Unidos da América. Tem razão se a intenção for essa. O regime americano assenta muitas vezes em falsas confissões em que se negoceia a verdade. Por exemplo, se alguém é acusado de um crime de violação e o Ministério Público tiver dificuldade em provar este crime pode chegar a acordo com o arguido e este confessar a prática de um crime mais leve, ainda que não o tenha cometido. Os procuradores americanos não estão sujeitos aos deveres de legalidade e objectividade como em Portugal e são conhecidos por procurarem obter condenações a todo o custo. Nos Estados Unidos, a confissão é muitas vezes uma ficção que faz parte de um acordo e não a revelação da verdade. Este é um caminho que não podemos trilhar, apesar desta forma ser fácil aumentar de forma espectacular a celeridade dos grandes processos. Para que mais facilmente se perceba a perversão da negociação dos factos em sede de julgamento, recomendo a visualização do filme Marshall, com Chadwick Boseman no papel de Thurgood Marshall, o primeiro juiz negro do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América. Ao longo do filme percebemos como um homem inocente esteve prestes a confessar algo que não fez para evitar uma pena mais elevada.

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