SÁBADO, 9-01-2024 por Paulo Lona, Secretário-Geral do SMMP
O espaço público mediático encontra-se profundamente contaminado por um conjunto de ideias erróneas sobre a justiça e, em particular, sobre o Ministério Público.
Basta ver os noticiários, ouvir os programas de informação, ler os jornais/revistas, escutar os comentadores políticos (uns mais neutrais que outros) e os especialistas em marketing político e acompanhar as redes sociais para constatar que o espaço público mediático se encontra profundamente contaminado por um conjunto de ideias erróneas sobre a justiça e, em particular, sobre o Ministério Público.
Essa contaminação é, por vezes, intencional, obedecendo a lógicas de funcionamento político-partidário e de marketing e, em outras ocasiões, apenas ignorante e desconhecedora da realidade.
A disseminação deliberada de informações falsas pode minar a compreensão coletiva da realidade. Isso cria uma base frágil para a tomada de decisões informadas, prejudicando a capacidade da sociedade de abordar questões críticas de maneira fundamentada.
É um fenómeno mundial e ao qual Portugal não está imune (basta pensar no que se passa nos Estados Unidos da América): poderes externos ou grupos com interesses específicos manipulam o espaço público para controlar narrativas e influenciar a opinião pública. Isso compromete a autonomia das pessoas ao moldar as suas perceções de eventos e questões.
Quando o espaço público é contaminado, com informações imprecisas ou enviesadas, a confiança nas instituições é afetada, podendo inclusivamente enfraquecer a capacidade das instituições de funcionar eficazmente.
O ataque cerrado que é feito a instituições essenciais ao funcionamento de um Estado de Direito Democrático, como o Ministério Público e Procuradoria-Geral da República, é grave e descredibilizador, parecendo, em muitas ocasiões, uma retaliação por investigações em curso que comprometem pessoas e interesses políticos, partidários, económicos etc…
Foi criada e alimentada a percepção de que o Ministério Público é uma espécie de lobo mau que “caça” políticos, ataca as instituições democráticas deste país, tem poder em excesso e exerce-o abusivamente.
E, como quem domina uma grande parte do espaço público-mediático são os mesmos responsáveis por criar/alimentar essa percepção, torna-se uma missão quase impossível remar contra a maré e demonstrar a realidade (muito diferente das perceções precipitadas).
Com isto não quero dizer que o Ministério Público atue sempre da melhor forma e que não seja suscetível de crítica.
Nenhuma instituição num Estado de Direito está acima da crítica pública.
Tal como ninguém, nesse mesmo Estado de Direito, deve estar acima de ser objeto de uma investigação criminal quando surjam em público factos que possam configurar a prática de um crime.
Como recentemente referiu Rui Cardoso, ex-Presidente do SMMP, todos são defensores do Estado de Direito até que este lhes bate à porta.
A crítica que eu ouço e leio raramente é construtiva e visa aperfeiçoar o funcionamento do Ministério Público e da Procuradoria-Geral da República.
O que se visa é, em muitas situações, atacar a atuação em processos concretos e, como estratégia, descredibilizar o Ministério Público e os seus magistrados.
Nunca se questionou tanto a instauração de inquéritos para investigar factos que possam consubstanciar crime como agora.
Alguns comentadores, pelo que ouço e leio na comunicação social, entendem que o Ministério Público só deveria iniciar uma investigação quando já tivesse a certeza (ou quase certeza) de que tinha ocorrido um crime e de quem eram os seus responsáveis.
Mas, não é mesmo para isso que se inicia um inquérito?
Apurar a verdade (os factos que se consideram suficientemente indiciados), perante esta concluir se foi praticado algum crime e, na afirmativa, descobrir quem são os responsáveis.
A circunstância de qualquer investigação criminal se iniciar com a abertura de um inquérito é ela própria uma garantia para a sociedade e para os próprios visados nessa investigação, tal como a circunstância de um conjunto de atos que mais contendem com os direitos, liberdades e garantias terem que ser autorizados por um juiz de instrução criminal.
Ou, será que estes pseudo – defensores do Estado de Direito preferem um sistema em que existam pré-investigações policiais, desconhecidas do público e dos visados, que só se convertem em inquéritos quando a investigação está concluída!
Onde ficam as garantias de legalidade, objetividade e transparência que resultam do facto de existir uma magistratura titular da ação penal?
Em Portugal, o exercício da ação penal está vinculado, desde logo constitucionalmente, ao respeito pelo princípio da legalidade, significando que o Ministério Público, como magistratura titular da ação penal, está obrigado a investigar todos os factos que constituam crimes (públicos denunciados ou de que tome conhecimento ou semipúblicos denunciados).
Ao contrário do que acontece em outros países (E.U.A. por exemplo), em que a atividade do Ministério Público se norteia pelo princípio da oportunidade, em Portugal desenvolve-se sob o signo da estrita vinculação à lei.
O Ministério Público, ao contrário do que ainda recentemente li, não abre inquéritos por tudo e por nada e não é cada denúncia, mais ou menos anónima, que dá lugar a um inquérito (serão arquivadas centenas de denúncias todos os dias porque não têm factos que consubstanciam crime ou porque os factos não estão suficientemente concretizados de modo a permitir a realização de uma investigação).
Eu próprio, como magistrado do Ministério Público, quando tinha inquéritos, cheguei a arquivar denúncias porque não concretizavam factos suscetíveis de serem investigados.
Mas, isso é muito diferente de arquivar uma denúncia anónima que contenha uma descrição factual suscetível de consubstanciar um crime (seria uma violação clara do princípio da legalidade).
Muitas vezes, só após uma investigação, ainda que sumária, é possível concluir pela plausibilidade ou não de se terem verificado certos factos denunciados e de estes constituírem crime.
Nem sempre as coisas são tão simples como alguns pretendem fazer crer.
Nem tudo é só preto ou branco, existem áreas cinzentas que impõem apuramento factual e estudo da complexidade da matéria de direito.
Mas, a realidade pouco interessa a quem procura “envenenar” a opinião pública e criar/alimentar perceções negativas sobre o Ministério Público e a justiça em geral.