A diabolização da figura do arguido

20/11/2024

Revista Visão
Pedro Nunes
Procurador da República, Presidente da Regional de Coimbra do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

Embora o termo à primeira vista nos possa remeter para algo negativo, por estar associado à suspeita de envolvimento na prática de um crime, em boa verdade o estatuto de arguido traz consigo muitas vantagens e relevantes direitos para a pessoa que se encontra nessa posição

A figura de “arguido” surgiu no ordenamento jurídico português com a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987. Antes disso, o nosso sistema jurídico utilizava a figura do “réu” para todas as pessoas envolvidas num processo criminal. O termo “arguido” como conceito próprio foi introduzido para designar a pessoa contra quem se está a desenvolver uma investigação criminal, antes de ser formalmente acusada ou de ser levada a julgamento.

Foi no Código de Processo Penal de 1987, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, onde primeiro se consagrou o estatuto do arguido, estabelecendo-o como uma pessoa que, no âmbito de uma investigação criminal, é chamada a defender-se de indícios que possam levar à sua acusação formal. Nesse ato legislativo, conferiu-se à figura do arguido um conjunto de direitos e garantias, como o direito ao silêncio, o direito à defesa e o direito a ser informado sobre os factos de que é suspeito.

Em Portugal, a constituição como arguido tem implicações legais e processuais importantes no âmbito de um processo criminal. Embora o termo à primeira vista nos possa remeter para algo negativo, por estar associado à suspeita de envolvimento na prática de um crime, em boa verdade o estatuto de arguido traz consigo muitas vantagens e relevantes direitos para a pessoa que se encontra nessa posição.

Estes direitos, que visam assegurar a sua proteção, permitem-lhe, para além do mais, participar de forma ativa no processo, conhecer com clareza os passos da investigação, e de nela intervir, o que pode contribuir para a preparação de uma defesa eficaz dos seus direitos e para uma melhor defesa perante o tribunal.

Mas, de facto, ser constituído arguido pode ser inevitável, e pese embora tal inevitabilidade acarrete a garantia de significativos direitos, na verdade, consequências como a estigmatização social, a possibilidade de restrições de liberdade e implicações de ordem pessoal e financeira podem ser consideráveis. Mesmo que uma pessoa eventualmente venha a ser absolvida ou o processo seja arquivado, as repercussões para a sua vida podem ser duradouras, especialmente se a investigação for acompanhada de grande atenção mediática.

É certo que ao longo dos anos, decorrente da globalização e facilidade de transmissão da informação, associada ao surgimento das redes sociais, tem-se vindo a criar uma imagem extremamente negativa de pessoas que assumiram a qualidade de arguido no âmbito de uma investigação, especialmente antes de qualquer acusação ou condenação formal.

Esta diabolização da figura do arguido ocorre frequentemente nos meios de comunicação social, mas também tende a ser alimentada por certos discursos políticos ou sociais, e pode ter consequências significativas para a perceção pública do próprio processo e das Instituições.

O fenómeno – da diabolização da figura do arguido – representa uma ameaça à realização da Justiça e à equidade processual, podendo resultar em condenações antecipadas e injustas, que ocorrem na praça pública, fora do local próprio, que é o Tribunal. Por isso, é indispensável às autoridades judiciárias em particular, e à sociedade em geral, estarem alertadas para garantir que o processo criminal é conduzido de acordo com os princípios fundamentais do Direito.

O fenómeno de diabolização da figura do arguido pode ter várias formas e efeitos, incluindo:

  1. Preconceito público: Quando a figura do arguido é retratada de forma excessivamente negativa ou como “culpada” antes mesmo de ser julgada, pode gerar um estigma público que afeta a sua reputação. Em muitos casos, o arguido pode ser tratado como culpado antes de qualquer julgamento, prejudicando o seu direito à presunção de inocência.
  2. Violação da presunção de inocência: A presunção de inocência é um princípio fundamental do direito penal e processual, segundo o qual toda a pessoa é considerada inocente até que se prove a sua culpa. A diabolização pode minar esse princípio, criando uma imagem de culpabilidade pública ainda não julgada pelo sistema de justiça.
  3. Manipulação mediática: A Comunicação Social tem um papel central na formação da opinião pública. Quando a cobertura de um caso se foca unicamente nos aspetos negativos ou nos piores aspetos do arguido, isso pode distorcer a perceção da sociedade e influenciar a forma como as pessoas entendem o caso, sem que tenham acesso a todos os elementos factuais ou ao resultado do julgamento.

A diabolização da figura do arguido pode prejudicar tanto o processo judicial quanto a sociedade, porquanto contribui para um ambiente de polarização e intolerância social, onde se ignora a imparcialidade da Justiça em favor de julgamentos apressados e condenações públicas.

É essencial garantir que durante todo o processo, os direitos do arguido sejam respeitados a todo o momento, designadamente a presunção de inocência, o direito à defesa e a proteção da sua privacidade, até que a culpabilidade seja demonstrada em tribunal.

E assim se fará Justiça.

 

Share This