BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 07-09-2020 por Adão Carvalho, Secretário-Geral do SMMP
O Governo anunciou, para discussão pública, as principais medidas da estratégia de combate à corrupção para os próximos quatro anos.
O tema da corrupção tem feito parte do discurso político, embora sem que seja visível na prática uma mudança do paradigma comportamental do aparelho do Estado.
A estratégia apresentada resume-se a um conjunto de boas intenções no âmbito dos mecanismos de prevenção que, contudo, tememos possa não passar disso.
A prevenção da corrupção exige uma rutura com a legislação e os procedimentos instalados no campo da gestão do que é público.
A adoção de legislação clara e adequada à realidade.
A transparência, a adoção de códigos de conduta e comportamentais pelos organismos públicos, a normalização de procedimentos, a autorregulação e a adoção de mecanismos de fiscalização permanentes e eficientes, constituem o ponto de partida para evitar práticas desviantes por parte dos dirigentes e funcionários públicos.
A mudança de paradigma, de uma sociedade até agora permissiva e até complacente com o tráfico de influências e a corrupção, constitui um longo e árduo caminho, que exige muitas ruturas com o estabelecido e que não vemos da parte dos sucessivos governos coragem ou mesmo vontade de assumir essa batalha.
Do ponto de vista repressivo nem sequer se pode falar numa estratégia, porque apenas são apresentadas duas ou três medidas de reduzido impacto no âmbito do combate à corrupção e que constituem o alargamento do âmbito de medidas já existentes.
Uma das medidas relaciona-se com os apelidados “megaprocessos” e os mitos gerados em volta dos mesmos.
O Código de Processo Penal já prevê várias causas para a separação dos processos, designadamente o decurso do prazo normal do inquérito.
Os chamados “megaprocessos” não são obra de autorrecriação dos magistrados que conduzem as investigações.
No âmbito da criminalidade económica e financeira é frequente que o mesmo arguido ou grupo de arguidos pratiquem diversos crimes, manifestamente interrelacionados entre si e em que, muitas das vezes, a compreensão global da atividade dos mesmos exige uma investigação conjunta dos factos, até porque a própria qualificação jurídica pode estar dependente da consideração global de todos os factos.
Por outro lado, exigindo em muitos casos a necessidade de obter prova no estrangeiro e o recurso a mecanismos de cooperação internacional para o efeito, é igualmente uma questão de economia de meios, evitando a multiplicação em vários processos separados da mesma solicitação e, mesmo em meios humanos, com o risco de sem o conhecimento global da totalidade dos factos se poderem frustrar mais facilmente algumas das investigações.
Para além disso o nosso sistema penal tal como conformado impõe como regra que os factos praticados por um indivíduo ou grupo de indivíduos num determinado nexo temporal devam ser objeto de uma valoração conjunta até porque tal é relevante para a determinação da pena.
Duvidamos, até, que a separação de processos resolva a questão da celeridade processual quando estão em causa processos relacionados com a criminalidade económico-financeira e envolvendo personalidades conhecidas.
Nessa matéria importa reequacionar o nosso sistema processual penal e torna-lo menos permissivo a expedientes processuais utilizados pelos sujeitos processuais para travar a marcha do processo e, designadamente, é tempo de questionar se fará sentido existir uma fase instrutória antes do julgamento nos casos em que existe uma acusação.
Não se compreende que sendo uma fase facultativa, nos casos em que existe acusação do Ministério Público, se transforme numa espécie de pré-julgamento, que se arrasta por vários meses ou anos, fazendo retardar excessivamente a fase de julgamento.
Talvez, seja de equacionar, acabar com a instrução nos casos em que existe acusação, de forma a que o processo siga de imediato para julgamento, onde todas as garantias de defesa dos arguidos serão devidamente salvaguardadas.
Quanto à confissão do arguido e aos acordos de pena em sede de julgamento, não vemos em que medida poderão contribuir para o combate à corrupção e auxiliar a investigação.
A confissão do arguido apenas seria relevante do ponto de vista investigatório se ocorresse num momento embrionário ou mesmo prévio à investigação, em que a mesma se apresentasse como manifestação do agente de arrependimento e vontade de colaborar com a mesma, designadamente quanto a crimes em que sem a sua colaboração a prova seria de difícil obtenção.
Na fase de julgamento, em que é suposto a prova já ter sido recolhida, o seu impacto será quando muito no encurtamento do julgamento, com dispensa de produção, nessa fase, das demais provas indicadas.