A greve que os magistrados do MP não queriam fazer

Jornal Expresso
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Deixaremos de ter uma magistratura especializada em áreas cruciais, como a família e menores, para passar a contar com uma magistratura multifuncional e generalista, a quem é exigido que trate processos de naturezas muito distintas
No passado dia 21 de junho, os magistrados do Ministério Público reunidos em Assembleia Geral Extraordinária do Sindicato dos Magistrados, recomendaram à Direção a realização de uma greve nacional nos dias 9 e 10 de julho e regional nos dias 11, 14 e 15 de julho (Lisboa, Porto, Coimbra e Évora).
Esta decisão não foi tomada de ânimo leve pelos magistrados, tendo resultado da postura inflexível do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e do Procurador-Geral da República. Antes disso, foi entregue à Procuradoria-Geral da República uma carta aberta, subscrita por 75% dos magistrados do Ministério Público, a solicitar a anulação da deliberação do CSMP relativa ao movimento anual de magistrados, tendo ainda sido realizada uma reunião com o Procurador-Geral da República.
Importa salientar que foi a primeira vez que uma carta aberta reuniu o apoio de um número tão significativo de magistrados, o que demonstra claramente o descontentamento gerado pela referida deliberação. No entanto, a vontade expressa pela larga maioria dos magistrados foi ignorada, não tendo sequer sido submetida a votação no CSMP a possibilidade de anulação ou suspensão do movimento.
Contudo, esta greve não se dirige contra a hierarquia do Ministério Público, nem contra o Procurador-Geral da República, o Conselho Superior do Ministério Público ou sequer o Ministério da Justiça. Trata-se, antes, de uma greve em defesa do cidadão, que é o destinatário final do trabalho desenvolvido pelo Ministério Público e a quem deve ser assegurada uma intervenção de qualidade e especializada nas diferentes áreas em que esta magistratura atua (trabalho, família e menores, cível, comercial, execução, penal, administrativo e tributário).
É, assim, um apelo dirigido à Procuradoria-Geral da República, ao Conselho Superior do Ministério Público e ao Ministério da Justiça para que reconheçam a realidade vivida no seio do Ministério Público: a exaustão dos seus magistrados — muitos deles em situação de elevado ou mesmo extremo risco de burnout —, a inexistência de medicina no trabalho, a precariedade agravada pela extinção de lugares e pela transformação de lugares de efetivo em auxiliar, bem como a importância fundamental da especialização, que não pode ser negligenciada. É imperativo garantir aos cidadãos um serviço público de excelência, qualificado e especializado.
Esta greve é também uma luta pelo bem-estar físico e psicológico dos magistrados do Ministério Público, que se encontram no limite das suas capacidades e correm o risco de já não conseguirem responder a necessidades básicas da sociedade. Não se trata de um capricho: perante o volume de trabalho atual, os magistrados já não conseguem garantir a proteção eficaz das vítimas de violência doméstica — havendo procuradores responsáveis por centenas de processos desta natureza — nem das crianças. A sobrecarga é tal que a vida de pessoas está, efetivamente, em risco.
Com a recente deliberação do CSMP, que introduz uma mistura de competências, a situação tende a agravar-se ainda mais. Deixaremos de ter uma magistratura especializada em áreas cruciais, como a família e menores, para passar a contar com uma magistratura multifuncional e generalista, a quem é exigido que trate processos de naturezas muito distintas. Um procurador que, nos últimos 15 anos, se dedicou à proteção de crianças e jovens não está preparado para despachar inquéritos de violência doméstica ou de criminalidade económica complexa. O resultado será a perda de qualidade no trabalho especializado que antes era desenvolvido, comprometendo-se, em simultâneo, a resposta na área criminal. Não queremos um dermatologista a fazer cirurgias cardíacas nem um professor de português a dar aulas de matemática.
Esta greve é, de forma inequívoca, legítima, pertinente e absolutamente necessária. Surge em defesa da dignidade do Ministério Público, da sua especialização e qualificação, do Estado de Direito Democrático e do papel essencial que o Ministério Público desempenha na proteção dos direitos dos cidadãos e na salvaguarda da legalidade democrática.
Esta greve é, igualmente, uma forma de contestação a uma deliberação do Conselho Superior do Ministério Público ilegal, injusta e errada. É ilegal porque usurpa competências do poder legislativo, viola princípios constitucionais e estatutários, nomeadamente os princípios da igualdade, inamovibilidade, segurança, estabilidade, bem como os deveres de consulta pública e de fundamentação. É injusta, pois agrava de forma significativa a carga de trabalho da grande maioria dos magistrados do Ministério Público. É errada porque compromete, de modo irreversível, a capacidade de resposta e a qualidade do trabalho dos magistrados do Ministério Público perante o cidadão e prejudica a boa administração da Justiça, afetando gravemente a qualidade do serviço especializado prestado à comunidade — em clara divergência com o programa do XXV Governo Constitucional.
É expectável que, nos próximos tempos, surjam as habituais críticas ao SMMP, vindas de quem revela dificuldade em aceitar, em democracia, a existência de um Sindicato com 50 anos de história, reconhecido e respeitado tanto a nível nacional como internacional, cuja voz tem sido — e continua a ser — incómoda para alguns poderes instituídos.
Compete ao SMMP não apenas a defesa dos interesses profissionais dos magistrados, mas também a salvaguarda coletiva da dignidade das suas funções e das instituições democráticas da justiça.
Esta é uma greve que os magistrados do Ministério Público não desejavam, mas que se veem obrigados a realizar em defesa de todos e pela qualidade da justiça.