SÁBADO, 14-11-2023 por Paulo Lona, Secretário-Geral do SMMP

Sabemos que muitos gostariam de ter um Ministério Público dócil e na dependência do poder executivo. Mas, felizmente para o nosso Estado de Direito, não é esse o caso em Portugal.

Começa a ser habitual quando existem investigações a incidirem sobre figuras públicas do Estado, sejam elas do espetro político do poder ou da oposição, “choverem” críticas sobre a atuação do Ministério Público, umas vezes porque foi muito lento, outras porque foi muito expedito e, ainda, outras porque transmitiu pouca informação à sociedade ou, em sentido oposto, porque nada deveria ter dito.

Uma coisa é certa desde que o processo envolva o poder político nas suas diversas esferas e seus titulares existirão críticas mediatizadas.

A propósito do processo de que todos falam nos dias que correm muito tem sido afirmado e nem sempre corretamente.

Convém ir à raiz das coisas e questionar qual o papel constitucionalmente reservado ao Ministério Público no nosso sistema de justiça e em obediência a que princípios tem que pautar a sua atuação na área penal.

O Ministério Público é o titular da ação penal.

E o que significa isto?

Que a magistratura do Ministério Público é responsável pela investigação da prática de crimes em Portugal, investiga diretamente ou através da delegação de competências em órgãos de polícia criminal (Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional República, Polícia Judiciária etc..).

Quando faz a investigação diretamente também se socorre da atuação, em termos operacionais, de elementos dos órgãos de polícia criminal, sem os quais não poderia, adequadamente, desempenhar a sua função, nomeadamente nas diligências de recolha de prova como buscas.

Todos os factos suscetíveis de consubstanciar crimes de natureza pública têm necessariamente que dar origem a um inquérito, que se destina a proceder à sua investigação e recolha de elementos de prova.

Só após a conclusão das diligências que se revelem necessárias estará o Ministério Público em condições de avaliar se existe um crime, quem o praticou e, consequentemente, se deve ser produzido um despacho de acusação ou arquivamento.

O Ministério Público, finda a fase processual do inquérito, tanto cumpre a sua função arquivando como acusando, desde que o faça em conformidade com a prova recolhida e o direito aplicável.

O que não faz qualquer sentido é partir do princípio de que se inicia um inquérito para acusar alguém.  Não se queira vincular uma investigação criminal a um resultado final quando esta se inicia.

Não é assim que o nosso sistema de justiça funciona nem poderia ser e só por ignorância ou má fé se pode transmitir essa ideia.

Independentemente de quem for o visado, que pode ou não ser constituído arguido, relativamente a quem pode ou não ser deduzida acusação, a instauração do procedimento criminal é obrigatória e decorre da lei.

A ideia que se tem feito passar na comunicação social de que estamos perante “um tiro ao Primeiro Ministro”, “um golpe de estado”, “o fim do mundo” ou “o fim do Ministério Público”, em especial caso venha a ser arquivado um processo em que é visado o Primeiro Ministro em Portugal, é um perfeito e total absurdo, cultivado por alguns habituais inimigos de uma justiça verdadeiramente independente, que só existe quando o Ministério Público é independente no exercício da sua função.

Autonomia sim, mas…é uma das expressões recorrentemente utilizada.

Ora, não pode existir aqui qualquer mas.

Ou temos uma verdadeira independência na investigação ou não temos e não existe aqui qualquer meio termo.

Ao contrário do que tem sido, por vezes, afirmado:

Não é o Ministério Público que faz cair Ministros.

Não é o Ministério Público que faz cair Primeiros Ministros.

Não é o Ministério Público que faz cair Presidentes da Câmara ou autarcas.

Qualquer demissão do exercício de funções públicas é o resultado de um juízo de natureza pessoal e política, realizado por titulares do poder executivo e a que o Ministério Público é alheio.

O Ministério Público e os seus magistrados desempenham de forma independente a sua função (o que para alguns é claramente um problema), não fazem política e não podem/devem ser condicionados na sua atuação por juízos de natureza exclusivamente política.

Não se peça ao Ministério Público que atue ou deixe de atuar em função de considerações políticas ou atendendo a possíveis repercussões na esfera do poder executivo porque isso seria desvirtuar o seu papel constitucional e tal seria nefasto para o nosso Estado de Direito.

Sabemos que muitos gostariam de ter um Ministério Público dócil e na dependência do poder executivo.

Mas, felizmente para o nosso Estado de Direito, não é esse o caso em Portugal.

Vamos, por um momento, imaginar que o Ministério Público estava na dependência do poder executivo, por exemplo do Ministério da Justiça!

Seria possível investigar Ministros, Secretários de Estado, Chefes de Gabinete e o próprio Primeiro Ministro? E seria essa investigação verdadeiramente independente?

Qual seria, por curiosidade, o resultado de uma sondagem em que esta questão fosse colocada aos cidadãos portugueses?

O sinal de que estamos perante um Estado de Direito Democrático com maturidade é precisamente a possibilidade de qualquer um ser objeto de uma investigação quando denunciados factos que consubstanciem crimes públicos, sem que existam condicionalismos de qualquer ordem, nomeadamente políticos, a essa investigação.

A investigação de titulares do poder executivo deve ser algo visto com normalidade democrática.

Não é possível, em sentido oposto, ver condicionalismos políticos naquilo que é o exercício normal da ação penal por parte do seu titular e em respeito dos princípios que regem o nosso sistema jurídico.

A independência de um sistema de justiça é absolutamente fundamental num Estado de Direito (no âmbito do que são os seus “checks and balances”) e sem esta a própria definição de Estado de Direito encontra-se comprometida.

Em conclusão, a realização de uma investigação a um Primeiro Ministro é um sinal claro de maturidade de um Estado de Direito e não uma qualquer intromissão indevida da Justiça no poder político.

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