JORNAL NEGÓCIOS  – 17-09-2019

Francisca Van Dunem teve nas mãos dossiês difíceis e teve de lidar com greves dos vários operadores. Competência técnica ninguém lhe nega, mas há áreas em que lhe faltou capacidade de concretização.

FILOMENA LANÇA

Um dos primeiros anúncios de Francisca Van Dunem foi o da alteração do mapa judiciário e reabertura das duas dezenas de tribunais encerrados pelo anterior governo. Ia também aumentar as vagas para novos juizes e magistrados do Ministério Público (MP) e investir no famigerado combate à corrupção, para o qual todos os governos têm prometido meios. A nova ministra, magistrada do MP, era um nome da casa, conhecedora dos meandros da Justiça, sabedora das feridas abertas e das curas pelas quais todos esperavam no setor. E o início de mandato foi prometedor e cheio de expectativas, difíceis de cumprir. Quatro anos volvidos, o balanço é agridoce. Há trabalho feito, reformas que leva no currículo, como a dos Tribunais Administrativos e Fiscais ou a do regime do Inventário, e há uma máquina mais tecnológica e mais próxima das pessoas, que já contabiliza em menos alguns milhares os processos que tradicionalmente se acumulam nas secretárias dos juizes e prateleiras dos tribunais.

Mas houve também reformas que ficaram pelo caminho e investimentos que não chegaram. Prudente, Van Dunem acabou por gastar grande parte das suas energias na procura de equilíbrios difíceis: entre as reivindicações das várias corporações do setor; entre as reformas herdadas do anterior governo e as suas próprias medidas; e entre as necessidades financeiras da Justiça e os limites impostos pelo Ministério das Finanças.

Espelho das suas dificuldades foi a contestação que, ao longo dos quatro anos, teve de enfrentar e que tem ainda pela frente. Os juizes fizeram greve, a primeira dos últimos 13 anos, e na próxima semana serão os guardas prisionais, que já avançaram com um pré- – aviso, e que, já abeira das eleições, insistem na falta de condições de trabalho, de meios humanos e, o eterno problema, na falta de aumentos de vencimento.

A questão dos vencimentos parece ter sido, aliás, transversal aos vários atores do panorama judicial. No caso dos magistrados, estava em causa a revisão dos estatutos, que vinha já do anterior governo. Com Francisca Van Dunem tudo pareceria mais simples, mas foi só ao início. A ministra acabou por mandar para o Parlamento uma proposta de estatutos que não lhes enchia as medidas e só aí o PS, com o necessário aval do Governo e os votos do PCP e do CDS, acabaria por desbloquear o braço de ferro salarial.

Mas porque não veio esse aval mais cedo? Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juizes Portugueses, acredita que a Francisca Van Dunem, “uma profunda conhecedora do setõr”, lhe faltou “peso político”, o que “levou a que se tivesse prolongado em excesso a revisão, mantendo durante bastante tempo um clima de crispação que teria sido de evitar”. Afinal, “aquilo em que o Governo cedeu na parte final era aquilo em que podia ter cedido na fase inicial. Simplesmente o que pareceu foi que a ministra não tinha autonomia suficiente para dizer que sim”, diz o magistrado.

Investimento, mas pouco

“Este mandato, tal como o de todos os ministérios, foi muito condicionado pela política geral do Governo, com níveis de investimento historicamente baixos”, lembra, por seu tumo.AntónioVentinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP. “A ministra tem muito boa vontade, mas enquanto não for dado à Justiça o papel que ela merece, não se faz nada”, lamenta.

Os números oficiais revelam que, em 2018, a despesa pública alocada à Justiça não chegou a 2% do conjunto da despesa pública.

Num orçamento que ronda os 1,3 mil milhões, mais de metade são receitas próprias, vindas sobretudo dos tribunais e dos registos.

Comparando com 2015, em 2018 a execução orçamental da Justiça ficou 86 milhões abaixo, embora até tenha recuperado face a 2017.

Não chega, defende Guilherme Figueiredo, bastonário da Ordem dos Advogados. “O MJ esteve asfixiado financeiramente” e isso deixou a ministra de mãos atadas e “não permitiu alterações essenciais, como a redução das custas judiciais. Francisca Van Dunem reconheceu que os valores tinham de ser revistos, mas avisou sempre, lembrando que era preciso encontrar alternativas de receita. E isso não sucedeu. O resultado é “uma denegação da Justiça” porque, por outro lado, também não se concretizou a revisão da lei do acesso ao direito – apropostadeleido Governo chegou ao Parlamento em junho deste ano e já não houve tempo. E entretanto, “estamos a retirar a classe média dos tribunais porque o apoio judiciário é apenas para os muito pobres”, lamenta. “A Justiça não foi considerada um bem essencial e prioritário, mas só um bem económico. Este é um problema do Governo e não apenas da ministra da Justiça”, remata o bastonário.

Justiça mais próxima

O Programa de Governo que António Costa levou ao Parlamento em Dezembro de 2015 destacava áreas como a política criminal – onde houve reforços, nomeadamente ao nível da Polícia Judiciária – e dedicava todo um capítulo à “agilização da justiça”.Aaposta concretizou-se não só com a reabertura dos tribunais, como num conjunto de medidas de simplificação e uso de novas tecnologias nos tribunais, registos, notários e nas próprias relações dos cidadãos com a máquina. Uma pedra no sapato foi a emissão do cartão de cidadão, em que assistimos a longas filas de espera O Ministério da Justiça reagiu com um reforço de meios e medidas online que minimizaram o problema.

Nos tribunais, além da já referida redução de pendências, há também a assinalar a desmaterialização de processos e medidas como o Justiça + Próxima, para o atendimento. Porém, também aqui os operadores apontam falhas. Faltou “a criação, obrigatória por lei desde 2014, das assessorias técnicas para os juizes nos tribunais porque a verba necessária nunca foi atribuída”, exemplifica Manuel Soares, lembrando que, por isso, “processos como o da Operação Marquês continuam a ser julgados portrêsjuízes, sem apoio”.

“Ficou um amargo na boca nesta legislatura porque várias reformas podiam ter avançado”, afirma, por seu turno, Jorge Batista da Silva, bastonário da Ordem dos Notários. Elogia a ministra pelo seu “papel fundamental na garantia de estabilidade institucional”, mas considera que ao nível das reformas necessárias, “debateu-se bastante, mas não se executou tanto quanto devia”. “Esta ministra teve de gerir os problemas das reformas que se fizeram e que não eramsuas. Fê-lo sem se notar um grande alarde público e as coisas foram-se resolvendo”, defende o bastonário.

E se Van Dunem preferiu cultivar um perfil de ministra discreta, disso mesmo se queixam, por exemplo, os funcionários judiciais, que não lhe perdoam ter cedido aos juizes, mas não ter terminado a revisão dos seus estatutos e integrado os suplementos. “Continuamos a ter um défice no que toca ao preenchimento dos quadros de funcionários e as promoções mantém-se congeladas, apesar de os lugares estarem lá, para serem preenchidos”, lamenta Fernando Jorge, presidente do Sindicato dos Funcionários JudiciaiaAestruturafez várias greves na segunda metade da legislatura e o balanço que faz da atuação da ministra é negativo.

“Sempre cordial, disponível, mas pouco mais do que isso.”

Entre os guardas prisionais o sentimento é idêntico e o Sindicato’Nacional do Corpo da Guarda Prisional acaba de lançar um pré- – aviso de greve para os dias de 20 a 23 de setembro. Tal como os funcionários judiciais, queixam-se das negociações do estatuto suspensas, da “recusa de equiparação à PSF’ e, em geral, de problemas no sistema prisional. “Sobrelotação das cadeias, formação, segurança em situações de catástrofe, tudo isso ficou por resolver”, enumera Jorge Alves, presidente do sindicato. A greve, a poucos dias das legislativas, diz, é já “um sinal para o próximo governo do que ficou por fazer”.

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