BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 22-08-2022
por Adão Carvalho, Secretário-Geral do SMMP

O Estado, ao optar pela arbitragem, demitiu-se das suas funções e entregou-as nas mãos de uma entidade privada quando era a esse mesmo Estado que cumpria assegurar justiça aos cidadãos em tempo razoável


A reboque da lentidão na justiça administrativa e fiscal e sob o impulso da “Troika”, a partir de 2011 passou a ser possível a sujeição a arbitragem dos atos tributários e a capacidade de celebração de convenções de arbitragem por parte do Estado e das pessoas coletivas de direito público na medida em que para tanto estejam autorizados por lei ou se tais convenções tiverem por objeto litígios de direito privado.

O Estado ao invés de investir nos tribunais administrativos e fiscais optou por deslocar competências destes para os tribunais arbitrais onde os interesses privados estão duplamente representados pelos árbitros – já que, nalguns casos, são clientes dos escritórios de advogados onde esses árbitros trabalham ou têm quota.

Por outro lado, em vez de reforçar os TAF em meios materiais e humanos, manifestou legalmente a sua preferência pela arbitragem como forma de resolução dos litígios administrativos e fiscais.

O Estado, ao optar pela arbitragem, demitiu-se das suas funções e entregou-as nas mãos de uma entidade privada quando era a esse mesmo Estado que cumpria assegurar justiça aos cidadãos em tempo razoável.

A discussão do recurso à arbitragem para resolução de conflitos nos negócios do Estado não deverá cingir-se à análise de dados que têm sido divulgados e que revelam que o recurso a esta via privada tem sido extremamente desfavorável para o Estado, mas sim para o elevado índice de exposição à corrupção que lhe poderá estra associado.

Na verdade, os processos arbitrais são secretos. As audiências não são públicas e ninguém pode consultar os processos, mesmo depois de terminados, faltando o necessário escrutínio público.

Para além disso, o Ministério Público não intervém sequer como parte acessória no processo, para acompanhar os procedimentos, fiscalizar a legalidade e recorrer em nome do interesse público.

A opção pela arbitragem suprime o controlo da decisão por uma segunda instância. As partes ficarão inexoravelmente vinculadas àquilo que for decidido por uma única instância de decisão. Esta irrecorribilidade, estende-se quer às decisões de fundo, quer às decisões sobre questões processuais que, nomeadamente, extingam o processo por falta de algum dos seus pressupostos.

É certo que não se extingue a possibilidade de controlo pelo recurso extraordinário de revisão, porém este tem um alcance de sindicabilidade da decisão muito mais apertado.

A falta de escrutínio público; a inexistência de intervenção de uma entidade autónoma de fiscalização; e as limitações do recurso; são terreno fértil para práticas corruptivas e para sonegar ou contornar a fiscalização de legalidade da despesa pública e dos contratos públicos pelo Tribunal de Contas.

Não vimos defender o fim da arbitragem ou negar a sua admissibilidade legal e constitucional, mas apenas que se trate de forma diferente aquilo que é, efetivamente, diferente e a necessidade de regras especiais capazes de fazer refletir na arbitragem administrativa as especificidades das relações jurídicas administrativas controvertidas e de dotar esta forma de resolução de litígios neste domínio de maior transparência e fiscalização.

Por fim, salientar que o recurso a meios alternativos de composição de litígios não pode desonerar o Estado da necessidade de dotar a jurisdição administrativa e fiscal dos meios necessários para garantir uma justiça em prazo razoável.

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