A realidade para além da especulação: os dados do Ministério Público

13/08/2024

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

Para aqueles que têm uma visão economicista da justiça e da atuação do Ministério Público (que não perfilhamos) e que gostam de dizer que é preciso fazer uma avaliação da relação custo – benefício é importante que não se esqueçam de incluir nessa avaliação os valores recuperados para o Estado por força da atuação do Ministério Público.

Foi recentemente divulgado o relatório síntese da atividade do Ministério Público relativo ao ano de 2023, e, mais uma vez, dele se extraem dados relevantes que contradizem, em diversos aspetos, o que, por vezes, se afirma como uma realidade indiscutível. 

De acordo com os últimos dados conhecidos, no ano de 2023, foram registados 480.208 novos inquéritos, que representaram um aumento de 10,4% em relação ao ano de 2022 e um aumento de 11,3% no total de inquéritos movimentados (480.208 entrados no ano e 252.699 transitados do ano anterior). 

Números a que não correspondeu, pelo contrário, um aumento correspondente de recursos humanos disponíveis (já para não falar dos outros recursos).

Os inquéritos findos representam cerca de 58% do total dos movimentados no ano (um aumento de 4,3% relativamente ao ano anterior).As acusações deduzidas foram de 3.949 em tribunal coletivo, 34.012 em tribunal singular, 5.709 em processo abreviado e 3.296 em processo sumaríssimo (a suspensão provisória foi aplicada em 14.397 processos e 487 foram arquivados por aplicação do artigo de dispensa de pena).

Vejamos os dados por fases processuais:Na fase de instrução, fase da responsabilidade de um juiz, as decisões proferidas em inquérito pelo Ministério Público foram confirmadas judicialmente em 75% dos casos em que foi proferida decisão instrutória de mérito (um pouco diferente do que se propala habitualmente). 

Foram proferidos 5.940 pedidos de abertura de instrução (4.232 pelo arguido e 1.617 pelo assistente) e findaram no total 5.691 processos (incluindo alguns dos que tinham transitado dos anos anteriores), sendo 2.557 com despachos de pronúncia (2.239 em instrução requerida pelos arguidos e 318 pelos assistentes) e 1.161 com despachos de não pronúncia (716 em instruções requeridas pelos arguidos e 445 pelos assistentes). 

Portanto, existiram 27,5% de decisões instrutórias de não pronúncia e foi aplicada a suspensão provisória do processo em 11,8%. 

Na fase de julgamento, igualmente fase da responsabilidade de um juiz, as decisões de acusação foram confirmadas em todas as formas processuais em percentagens que variaram entre os 66,7% e os 99,3%.

Mas concretamente: 66,7% (Tribunal de júri), 79,7% (Tribunal Singular), 85,7% (Tribunal Coletivo – que correspondem em sentido lato aos crimes mais graves), 95.7% (processos abreviados), 97,7% (julgamentos realizados em processo sumário) e, por fim, 99,3% (processos com requerimentos de aplicação de sanção em processo sumaríssimo).

Foram julgados 48.786 processos, dos quais 42.431 findaram com decisão de condenação total ou parcial (87%) e 6.315 com decisão de absolvição (findaram 1.876 por outros motivos). 

Os dados oficiais, agora de 2023 (tal com antes os de 2022), relativos à percentagem de decisões de pronúncia e de condenações em processos crime, contrariam a imagem que tantas vezes passa na comunicação social e no comentário de alguns “especialistas” de ocasião. 

Não sendo este o único indicador relevante é um dos que claramente contraria a imagem de incompetência que se quer fazer passar sobre a atuação do Ministério Público nesta área penal. 

Era interessante que alguns dos críticos habituais, que apenas falam de 2 ou 3 processos, viessem fazer a sua análise um pouco mais global, não da árvore, mas sim da floresta. Fica o desafio.Mas estes dados não são os únicos relevantes do citado relatório.

Olhando para a natureza dos crimes investigados existem dados que importa analisar pela tendência que revelam. No número de inquéritos instaurados em 2023 temos que destacar dois fenómenos criminais distintos, que são a cibercriminalidade (41.752) e a violência conjugal ou equiparada (36.626), sendo o primeiro consequência da evolução da criminalidade em ambiente digital e o segundo um infeliz fenómeno comum nos tempos atuais.

Nos últimos três anos os crimes relativos à cibercriminalidade têm vindo sucessivamente a aumentar, sendo certo que se trata de crimes cuja duração é tendencialmente elevada pelas dificuldades de investigação.  

A mesma tendência de subida, em 2023, aconteceu nos crimes ambientais (aumento de 26,5%), tráfico de estupefacientes (aumento de 25,3%), branqueamento de capitais (aumento de 32%), crimes económico-financeiros (aumento de 46,6%) e crimes relacionados com violência na comunidade escolar (um preocupante aumento de 105,16%). 

Em sentido contrário, verificou-se uma diminuição de novos inquéritos por crimes estradais e crimes de incêndio florestal. Uma das tarefas mais importantes que o Ministério Público assume na fase de inquérito é a recuperação do produto do crime para o Estado e, nesse particular, resulta do citado relatório de 2023 que foram declarados perdidos a favor do Estado valores no montante de 108.584,12 euros, foram “apreendidos ou arrestados bens e valores no montante total de 4.527.566.345,64 euros, tendo o Ministério Público, nas acusações e liquidações elaboradas, requerido a reposição de vantagens patrimoniais resultantes da prática de crimes na importância de 26.463.830,09 euros”.

Para aqueles que têm uma visão economicista da justiça e da atuação do Ministério Público (que não perfilhamos) e que gostam de dizer que é preciso fazer uma avaliação da relação custo – benefício é importante que não se esqueçam de incluir nessa avaliação os valores recuperados para o Estado por força da atuação do Ministério Público.             

Estes dados, não a especulação sobre 2 ou 3 processos, devem ser o ponto de partida para a análise da atuação do Ministério Público na área criminal. 

Qualquer análise séria da atividade do Ministério Público deverá ter em conta os dados estatísticos resultantes da sua atividade, não ignorando o especial contexto de carência de recursos humanos (escassez de magistrados, polícias e oficiais de justiça, bem como as múltiplas acumulações de serviço que os sobrecarregam etc..) e materiais (deficientes instalações; falta de gabinetes e salas para inquirições; e desadequação dos sistemas informáticos e redes etc..) existente. 

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