SÁBADO, 04-05-2021 por Paulo Lona, Secretário-Geral do SMMP

Os mesmos comentadores que de dia falam sobre a justiça, de tarde fazem análise política e de noite discorrem sobre o futebol, com inexcedível sabedoria sobre todos estes temas e com supostos argumentos sólidos e irrefutáveis, repetem, exaustivamente, o chavão “a Justiça anda em roda viva” e precisa de mudar.

– Os especialistas da Justiça –

Diz-se que em cada adepto de futebol há um treinador de bancada.Ora, nos últimos tempos, em cada comentador politico e do judiciário, existe um legislador, um reformador e um perito na Justiça.

Nos dias que correm, navegando na espuma dos dias e com o Marquês no horizonte, uma parte dos comentadores da política e do judiciário – que, muitas vezes, se confundem e se misturam –  “inundam” os programas televisivos e atarefam-se em análises, mais ou menos detalhadas e mais ou menos fundamentadas, sobre o funcionamento da justiça, apontando-lhe as falhas e indicando, algumas vezes, caminhos que colocam, a serem levados a sério, necessariamente em crise a clássica separação de poderes (legislativo, executivo e judicial) e que já foram ensaiados em países como a Polónia e a Turquia, com os resultados conhecidos para o Estado de Direito (encontramos nesse países exemplos claros de perniciosas intervenções  do político no Judicial: detenção, saneamento ou afastamento de magistrados incómodos).

Por vezes, os mesmos comentadores que de dia falam sobre a justiça, de tarde fazem análise política e de noite discorrem sobre o futebol, com inexcedível sabedoria sobre todos estes temas e com supostos argumentos sólidos e irrefutáveis, repetem, exaustivamente, o chavão “a Justiça anda em roda viva” e precisa de mudar. Alguns, outros ou os mesmos, com elevadas responsabilidades políticas, aproveitam para retomar temas que lhes são caros e revivem preconceitos construídos, ao longo de anos, com base em ideias feitas e repetidas à exaustão, porventura resultado de perceções distorcidas por contactos, menos positivos, com o sistema de justiça, não distinguindo o plano pessoal do institucional (sem a visão de Estado que se exige a quem faz da sua vida o interesse público e procura, nos mais variados planos, a sua prossecução). Estas conceções da justiça contrastam com uma visão moderna e europeia própria de um Estado de Direito, contrariam as recomendações de instituições europeias como a MEDEL (Magistrados Europeus para a Democracia e Liberdades), a GRECO (Grupo de Estados contra a corrupção), a Comissão Europeia (os seus relatórios sobre o estado da Justiça e o Estado de Direito em Portugal), o Parlamento Europeu e, mais relevante ainda, o bom senso.

Podemos dizer que não é preciso ser da “Justiça” para falar de “Justiça“, mas saber do que se fala e conhecer a realidade ajuda seja qual for a área (se queremos falar de vírus temos que ouvir a epidemiologia e se queremos falar da construção de pontes temos que ouvir a engenharia). E, qualquer reforma levada a cabo em confronto com quem vai ter que a aplicar está, muito provavelmente, condenada ao insucesso.

É necessário ouvir quem trabalha nos Tribunais – Magistrados, Oficiais de Justiça, Advogados, Administradores de Insolvência, Agentes de Execução e Solicitadores –  quando se procuram soluções para combater a morosidade, aumentar a eficácia e índices de produtividade, sempre tendo presente que a Justiça nunca pode ser, redutoramente, vista como uma tabela numa folha de Excel com processos entrados e saídos e um saldo final (um mero serviço do Estado com pendor estatístico). A justiça tem uma vertente humana impossível de reduzir a números. E, nesta matéria, tivemos, recentemente, um conjunto de propostas apresentadas por órgãos representativos de Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Advogados, Oficiais de Justiça e Agentes de Execução – o denominado pacto da justiça – que foram, total e completamente, ignoradas pelo executivo. A verdade é que foi possível, ainda que parcelarmente e apesar do que se diz sobre o corporativismo na área da justiça, a todos estes profissionais, que naturalmente apresentam visões distintas (condicionadas naturalmente pelo papel que cada um assume no sistema de justiça), obter um acordo sobre um conjunto de medidas relevantes para a Justiça e a sua eficácia.

De modo nenhum se pretende ignorar a necessidade de introduzir mudanças na Justiça, até para a dotar de respostas a uma realidade que é dinâmica/mutável. No entanto, essas mudanças, se pretendem realmente “atacar” a morosidade ou ineficácia, onde existe (e não se pode fazer essa avaliação com base num único processo), deverão, em primeira linha, passar por dotar as Magistraturas, Policias e os Oficiais de Justiça, dos meios materiais e humanos de que manifestamente necessitam para exercerem com proficiência as suas funções.

Do mesmo modo, é necessário melhorar a perceção que os cidadãos têm da Justiça o que estará sempre dependente de uma comunicação eficaz e transparente (as sondagens recentemente realizadas sobre a confiança na Justiça demonstram também essa ineficácia comunicacional).

Quando tanto se fala da criminalidade económico-financeira complexa, em especial da corrupção, e de alternativas legislativas que preencham um vazio de punição penal das situações de enriquecimento ilegítimo/injustificado, pouco se ouve falar do cerne da questãoa imperiosa necessidade de dotar quem investiga, quem coordena e dirige a investigação e quem julga dos meios necessários para o fazer (faltam Magistrados e Oficiais de Justiça, faltam peritos informáticos e contabilísticos…).

Não é o controlo do político sobre o judiciário, como alguns parecem pretender, que irá aumentar a eficácia e a transparência da Justiça, ainda mais quando, muitas vezes, é sobre o poder político que incidem investigações delicadas. Assim não pensa quem não sabe conviver com uma Justiça independente e procura nas, “supostas” ou “verdadeiras“, omissões ou falhas do sistema de justiça, um pretexto para a politizar e colocar em causa a independência de Juízes e Procuradores.*

– As lições a extrair de uma condenação por parte do Parlamento Europeu –

Por fim, não poderia terminar este artigo sem fazer uma breve referência à condenação de que o Governo Português foi alvo por parte do Parlamento Europeu relativamente ao processo de nomeação do Procurador Europeu. A sua importância assenta no reconhecimento, pelos parlamentares europeus, da necessidade de os procuradores serem independentes e que “qualquer intervenção de um governo nacional” terá um impacto negativo na reputação da Procuradoria Europeia.

A Assembleia de Delegados Sindicais do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que reuniu no dia 9 de janeiro de 2021, através de comunicado na ocasião emitido, referiu que “as nomeações de procuradores, com base em critérios de natureza política, podem comprometer a independência da investigação criminal” e que “não pondo em causa os candidatos, o processo de nomeação do Procurador Europeu foi pautado por atropelos à legislação, falta de transparência, influência política, designadamente por via diplomática, na escolha de um dos candidatos, com fornecimento de dados falsos pelo Governo Português“.

Pelos vistos essa opinião é partilhada por muitos outros no Parlamento Europeu, tendo a votação de censura sido aprovada com 633 votos a favor, 29 contra e 19 abstenções.

Esperamos que esta condenação faça refletir o Governo e outros atores políticos aquando de futuras nomeações de Magistrados para cargos como o de Procurador Europeu, não fragilizando a posição de independência dos Magistrados do Ministério Público, a própria imagem da Magistratura e garantindo a existência de total transparência do procedimento e da escolha. Mas, também se exige uma reflexão por parte de todos aqueles que criticam este processo de nomeação e, a nível interno, em total contradição, sustentam soluções que implicam uma maior intervenção do politico no judiciário.

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