SÁBADO, 02-01-2024 por Paulo Lona, Secretário-Geral do SMMP

As relações entre a política e a justiça, mais concretamente entre o poder executivo e o Ministério Público, não é de agora que passam por fases conturbadas.
 

Começou o ano de 2024.

É habitual quando se inicia um novo ano, com um conjunto de novas expectativas, enumerar alguns dos desejos mais importante para o setor da justiça e, em particular, no que diz respeito ao Ministério Público.Não irei agora fazer esse exercício, repetido ano após ano e que pouco ou nenhum eco encontra nos titulares do poder executivo.
Pelo contrário, irei procurar fazer o exercício de revisitar o passado para compreender o presente e perspetivar o futuro.

A história e os acontecimentos muitas vezes repetem-se sem que os próprios protagonistas tenham essa mesma percepção.

As relações entre a política e a justiça, mais concretamente entre o poder executivo e o Ministério Público, não é de agora que passam por fases conturbadas.

Vamos olhar para a realidade do Ministério Público nos anos 80 e 90, através da visão de uma das pessoas que melhor conhecia a realidade da justiça nesse tempo.

O Conselheiro jubilado Cunha Rodrigues exerceu o cargo de Procurador-Geral da República durante 16 anos seguidos, tendo sido empossado nessas funções a 11 de setembro de 1984.

Ao reler o livro que publicou, “Memórias Improváveis – Os longos anos de um Procurador-Geral”, chego à conclusão que é possível transpor muito do que é aí relatado para a atualidade.

O retrato da realidade vivida nesses anos e a realidade atual encontram inesperados pontos de contacto e curiosas similitudes.

Dizia o Conselheiro jubilado que “a verdade é que aumentavam os recalcitrantes que iam enchendo os ouvidos dos decisores políticos com críticas à atuação do Ministério Público. Por vezes, tratava-se de gente séria, ainda que crédula, outras vezes a contestação era organizada por verdadeiros inimigos do Direito cuja preocupação não era o aprimoramento institucional das magistraturas, mas o conhecimento e o controlo da sua efetiva capacidade de investigação”.

Por outro lado, quando tanto se fala de cultura democrática, sem se perceber que o respeito pelo exercício do poder judicial está no cerne dessa mesma cultura, é bom recordar as palavras de Cunha Rodrigues na sua obra, quando refere que o seu pessimismo aumentava com as reações de partidos políticos a certas investigações “suscitando, em termos de «boa questão», o problema de saber se não seria de fazer regredir a autonomia do Ministério Público…. No processo UGT, a acusação foi deduzida em 1995 e logo objeto de grande alarido nos circuitos partidários, pelo timing político. O número de eleições arrastava naturalmente as acusações para timings políticos e dava aos políticos uma excelente oportunidade para lançarem a farpa. Não ficávamos surpreendidos nem inquietos, pois eleições havia muitas e não existiam, no calendário judicial, dias fastos e nefastos”.

“A campanha tinha atingido níveis inimagináveis. Agregava solidariedades políticas e opiniões jurídicas e associava atores de vários quadrantes” escreveu no seu livro Cunha Rodrigues, que em entrevista dada na ocasião referiu que a campanha apenas visava desacreditar o Ministério Público e condicionar a ação da justiça, advertindo que “há um limite a partir do qual também os magistrados têm o indeclinável dever de dizer basta”.

Ainda a propósito das relações entre política e justiça, tendo agora como pano de fundo os inquéritos que ficaram conhecidos por “Ministério da Saúde” e “Hemofílicos”, refere Cunha Rodrigues algo que ainda hoje mantém a sua atualidade: “Gradualmente, as fugas de informação, começavam a ser utilizadas como meio processual de vitimização da defesa e de diabolização da acusação. No meio, estavam os órgãos de comunicação social que se alheavam das componentes ético-sociais da situação, por não conseguirem ser agentes neutros e não quererem perder o valor-noticia dos acontecimentos” e complementa com uma acusação ainda hoje recorrente “A ideia de que os inquéritos eram instaurados por pró-atividade e até, não raro, por critérios seletivos ou em razão de uma agenda política não tinha o mínimo fundamento”.

Por fim, referindo-se especificamente ao fenómeno da corrupção, Cunha Rodrigues escreve que “eram evidentes os sinais que mostravam que importantes sectores da Administração Pública e franjas dos Governos e dos Partidos estavam a ser tocados. Quando o alarme disparou, os meus problemas escalaram. Influentes políticos abeiravam-se de amigos comuns e censuravam-me pela perseguição que, nos seus dizeres, eu movia a gente impoluta. Alguma desta «gente» sobreviveu muito tempo na impunidade. Alguns casos, viria a ser condenada, mais tarde, a pesadas penas de prisão”.

No renovar do ano, deixo este retrato traçado por um dos mais eminentes juristas e magistrados do seu tempo, que permite compreender a complexidade das relações entre a política e a justiça, bem como que as acusações ao Ministério Público não são novas e, pelo contrário, se renovam em função de processos concretos e interesses específicos que são visados em investigações concretas.

Em tempos Francisco Sousa Tavares, pai de Miguel Sousa Tavares e ilustre advogado, escreveu no jornal o Independente que “a conquista da independência para o Ministério Público foi o princípio e exercício de um magistério que cada dia que passa se mostra mais essencial à conservação, defesa e prática duma Democracia”.

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