BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 19-06-2023 por Adão Carvalho, Presidente do SMMP

A empatia com notícias falsas possibilita o aparecimento de formas individualizadas de ação política, sem que o recetor tenha total noção de que contribui para a partilha massiva de informação inverdadeira, viciada ou mesmo falsa


O fenómeno dos “factos alternativos” e das “notícias falsas” (a que se convencionou chamar, usando a terminologia anglo-saxónica, de fake news) tem povoado densamente os debates sobre as atuais dietas informativas, os processos que as sustentam, assim como as suas implicações e consequências para as democracias.

Não é uma questão cingida ao debate político, mas alcança todas as organizações e instituições, públicas e privas, que têm que lidar com este fenómeno no dia a dia da sua atividade.

Assiste-se a uma potencial disrupção a que alguns autores deram sentido apelidando os tempos atuais como post-truth, i.e., uma era na qual os factos e as evidências foram substituídos por crenças pessoais e emoções.

O uso das redes sociais é o palco ideal para que se espalhem como verdadeiras falsas informações ou versões enviesadas ou viciadas das mesmas, para manipular os sentimentos dos recetores criando empatia com as mesmas e induzindo às apodadas “individualized collective actions”, ou seja, ações espontâneas que se enquadram em ações coletivas sem organização. A empatia com notícias falsas possibilita o aparecimento de formas individualizadas de ação política, sem que o recetor tenha total noção de que contribui para a partilha massiva de informação inverdadeira, viciada ou mesmo falsa.

Quem queira manobrar a opinião dentro de uma organização, instituição, empresa ou associação, basta introduzir numa rede social uma informação “trabalhada”, com os pozinhos necessários para alimentar um conjunto de recetores predispostos e ávidos por participarem com os seus posts, sem a devida filtragem da veracidade da informação que está na sua origem, sobre a qual opinam, e que se vão autoalimentado, sobrepondo-se comentário sobre comentário, ganhando vida própria, ao ponto de rapidamente os comentários serem uma afloração das próprias lógicas e frustrações emotivas e pessoais, totalmente desligadas da informação que lhes deu origem.

Neste ambiente o valor da informação disseminada é determinado, não pelo valor do produto em si mesmo, mas antes pelas interações geradas.

Trata-se de uma verdade alternativa e virtual, que não obedece a qualquer filtro de autenticidade e veracidade, tantas vezes usada como meio de satisfazer vontades e vinganças pessoais ou como rampa de lançamento para ambições pessoais.

É aquilo a que se chama information disorder, onde se identificam três tipos: “mis-information” (informação falsa que é partilhada, mas não tem como objetivo causar danos), “dis-information” (informações falsas partilhadas com vista a causar danos) e “mal-information” (informação verdadeira da esfera privada que é partilhada na esfera pública para causar danos).

Claro que estes espaços de participação coletiva, pouco democráticos, acarretam consequências negativas para a vida das organizações.

Desde logo, o afastamento, por parte das pessoas que integram uma organização, dos mecanismos tradicionais e democráticos de participação nos destinos do ente coletivo, seja pela via eleitoral, seja por outra das vias previstas, e a sua tendencial substituição pelas redes sociais, contribuindo para o empobrecimento da democracia nas organizações.

Por outro lado, é mais fácil a manipulação da informação através das redes sociais do que nos espaços tradicionais de participação coletiva, porque naquelas normalmente a verdade que impera não é a realidade dos factos, mas uma verdade autogerada no processo coletivo de interação tantas vezes bem distante dessa mesma realidade.

Em terceiro lugar porque essa verdade autoproduzida e baseada em afirmações falsas é impossível de ser contrariada, porque as redes sociais não dão espaço ao contraditório, à diferença de opinião, ao esclarecimento. A própria lógica de funcionamento exclui a reposição da verdade. A verdade não interessa, não gera posts, não gera interação.

Mesmo com as dificuldades crescentes com que se deparam as organizações, é necessário não se deixarem deglutir pelas redes sociais e pelo universo das fake news e continuarem a incentivar os processos democráticos de participação e tomada de decisão.

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