BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 20-06-2022
por Adão Carvalho, Secretário-Geral do SMMP

A análise de Adão Carvalho às consequências nos processos que já tiveram uma decisão definitiva, com arguidos a cumprir pena, e aos processos pendentes


É usual dizer-se que existem potencialmente tantas interpretações quantos os juristas. E quando existe muita poluição informativa, como aconteceu após a publicação do Ac. do TC n.º 268/2022, é normal existir alguma precipitação entre os aplicadores do direito sobre as consequências a extrair da declaração de inconstitucionalidade.

Temos, para nós que, não obstante não terem consagração expressa na lei, os princípios do bom senso e da razoabilidade na interpretação da lei, estão implícitos nos princípios que têm consagração expressa e, por conseguinte, interpretações terroristas e desestabilizadoras da segurança jurídica, em regra, não têm efetivamente apoio na lei.

Comecemos por analisar as consequências nos processos que já tiveram uma decisão definitiva, isto é, transitada em julgado, com arguidos a cumprir pena.

Quanto a esses a nossa Constituição é clara, no artigo 283º, n.º 3, ao ressalvar o caso julgado das consequências da declaração de inconstitucionalidade, salvo declaração expressa do TC em contrário, o que no caso do acórdão sobre os metadados não acontece.

Em suma, para os processos com decisão definitiva, em que os arguidos já cumprem pena, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não produz qualquer efeito sobre os mesmos.

E quanto aos pendentes?

A declaração de inconstitucionalidade tem por efeito que a norma declarada inconstitucional deixe de existir na ordem jurídica desde a sua entrada em vigor, no caso a norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, que determinava para os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações, a obrigação da conservação dos denominados metadados, pelo período de um ano, a contar da data da conclusão da comunicação.

Porém, esta não era a única norma a permitir a conservação dos referidos dados, nem o seu fornecimento às autoridades judiciárias.

O artigo 6º, n.ºs 2 e 3, da Lei 41/2004, ainda em vigor, estipula que os dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações podem ser guardados e tratados até ao final do período durante o qual a fatura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado. Esse prazo é, da conjugação com a Lei nº 23/96, de 26 de julho, diploma legal que define regras respeitantes à prestação de serviços públicos essenciais, de seis meses, prazo que o fornecedor de serviço tem para reclamar o respetivo preço.

Por seu lado, a Lei do Cibercrime, no seu artigo 14º, possibilita ao Ministério Público solicitar aos operadores de comunicações / fornecedores de serviço de “dados relativos aos seus clientes ou assinantes, neles se incluindo qualquer informação diferente dos dados relativos ao tráfego ou ao conteúdo”, mas incluindo, porém, nos termos da al. b) do n.º 4 do mesmo artigo, os dados respeitantes à faturação e ao pagamento, disponíveis com base num contrato ou acordo de serviços; ou qualquer outra informação sobre a localização do equipamento de comunicação, disponível com base num contrato ou acordo de serviços, ou seja, todos os metadados.

Importa ainda chamar à colação que, quanto aos dados de base, inexiste qualquer norma legal a estipular prazo para a sua conservação e manutenção, pois dos artigos 4º, n.º 2 e 6º, n.º 1, da Lei 41/2004, apenas resulta a obrigação de eliminação dos dados de tráfego para além dos seis meses.

Em resumo, podemos extrair as seguintes conclusões:

– Quanto aos dados de base nenhuma consequência resulta da declaração de inconstitucionalidade, porque os mesmos podiam e podem ser conservados e pedidos pelas autoridades judiciárias a qualquer tempo, inexistindo qualquer obrigação legal da sua eliminação.

– Quanto aos metadados já considerados de tráfego (os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede – localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), a declaração de inconstitucionalidade não produz qualquer efeito em relação àqueles que foram obtidos no prazo de seis meses, período máximo em que os fornecedores de serviço os podem conservar nos termos da Lei 41/2004 e a que as autoridades judiciárias podem aceder nos termos da Lei do Cibercrime e do artigo 189º, n.º2, do Código de Processo Penal, sendo para o efeito irrelevante que o fundamento utilizado no despacho tenha sido a norma declarada inconstitucional ou não.

O que importa é que existiam concomitantemente com a referida Lei outros dispositivos legais que permitiam o acesso, como sejam o artigo 14º, da Lei do Cibercrime e o artigo 189º, n.º 2, do Código de Processo Penal, conjugados com a Lei 41/2004.

Quanto aos dados já considerados de tráfego e fornecidos pelos operadores de serviços além do prazo de seis meses, ainda assim não serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade se o pedido pelas autoridades judiciárias ou policiais chegou aos mesmos dentro do prazo de seis meses, considerando-se o mesmo como pedido de preservação de dados, ao abrigo do disposto no artigo 12º, n.º 1, da Lei do Cibercrime, que possibilita a sua conservação para além daquele prazo, por períodos renováveis de três meses e até ao prazo máximo de um ano.

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