BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 06-02-2024 por Adão Carvalho, Presidente do SMMP
A detenção, enquanto privação de liberdade, mesmo que temporária e legitimada, tem sempre caráter de exceção, e qualquer atuação das autoridades judiciárias não deve perder de vista essa matriz de excecionalidade
A propósito de mais um caso concreto, como aliás tem sido apanágio, muito se tem falado do prazo de 48 horas para apresentação de um detido a um juiz para interrogatório judicial tendo em vista a aplicação de medidas de coação e já alguns enunciam a necessidade de se mudar a lei.
Começava por referir que a detenção, enquanto privação de liberdade, mesmo que temporária e legitimada, tem sempre caráter de exceção, e qualquer atuação das autoridades judiciárias não deve perder de vista essa matriz de excecionalidade.
Com a alteração introduzida no artigo 28º, n.º 1, pela quarta revisão constitucional, procedeu-se à adequação a uma nova terminologia constitucional, mas para além disso apresenta uma alteração de natureza gramatical: enquanto que anteriormente se dizia que a detenção deveria ser submetida no prazo máximo de 48 horas “a decisão judicial de validação ou manutenção,…”, atualmente diz-se que a detenção deverá ser, no mesmo prazo, sujeita “a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coação adequada,…”.
O prazo de 48 horas constitucional e legalmente fixado tem por objetivo limitar a privação do direito à liberdade por via administrativa, especialmente a policial, ou seja, o que o parâmetro constitucional impõe é um prazo máximo de prisão administrativa, que não poderá exceder as 48 horas.
Com efeito, se o prazo de 48 horas se reportasse ao momento em que é proferido despacho de validação da prisão, após o interrogatório, teríamos que admitir que a legalidade da prisão dependeria em boa medida não só da atuação policial e do Ministério Público e da prontidão com que o detido havia sido entregue em tribunal, como ainda do próprio arguido e das opções que ele entendesse tomar neste primeiro interrogatório, designadamente quanto ao tempo gasto nas respostas e na exposição da sua defesa. Isto é, a legalidade da prisão ficaria dependente de ato do próprio interessado, o que seria incompreensível, atentos os riscos que a solução acarretaria não só para a utilidade do interrogatório, como para os direitos de natureza garantística que a lei confere aos próprios arguidos nesse momento processual.
Não podemos esquecer que visando o interrogatório judicial a aplicação de medidas de coação restritivas ou privativas da liberdade, mormente a prisão preventiva, impõe-se que ao arguido seja garantido o exercício do direito de defesa, concretizável no exercício do direito de contraditório, o qual só será possível se ao arguido for dado conhecimento dos factos materiais em que se consubstanciam as razões fácticas [ou histórico-fácticas] em que se apoia, ou, para usar os termos constitucionais, que determinam a detenção.
Tal não se coaduna, em processos com alguma complexidade e/ou vários detidos, com uma decisão no prazo de 48 horas após a detenção, sob pena de o Tribunal para cumprir esse prazo ter de suprimir por completo o direito dos detidos a ter acesso aos autos e a exercerem efetivamente o seu direito de defesa.
Entendemos, contudo, que, não obstante ser hoje inequívoco que o prazo de 48 horas é para apresentação dos detidos ao juiz e não para ser proferida a decisão após interrogatório dos mesmos, tal não deixa de impor ao Tribunal, pragmatismo e razoabilidade, de forma a evitar o prolongamento dos interrogatórios até à decisão por tempo excessivo.
Em primeiro lugar, avaliando em cada momento, até à decisão, se a detenção ainda se justifica em face dos pressupostos que lhe subjazem, em relação a todos ou a algum dos arguidos, podendo optar por os colocar em liberdade em face do juízo que vá fazendo sobre as medidas de coação que a final irá aplicar.
Mas para além disso, efetuando uma correta interpretação do ato processual que está em causa e da sua finalidade e, nesse contexto, conformando o direito de defesa dos arguidos ao que é razoável, consciente que não se trata de garantir a estes o tempo para a defesa próprio de um julgamento.
Por isso, entendemos que não se justifica qualquer alteração legislativa, mas uma interpretação adequada e razoável dos preceitos já existentes.