BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 15-01-2024 por Adão Carvalho, Presidente do SMMP
Basta analisar os últimos trinta anos para verificarmos que a preocupação dos políticos com a reforma da justiça e do Ministério Público, em particular, vem sempre associada a processos judiciais criminais que envolvem políticos
Corria o ano de 2011 quando o governo italiano liderado por Sílvio Berlusconi adotou, em Conselho de Ministros, uma reforma constitucional que pretendia tornar a justiça, nas palavras de Angelino Alfano, ministro da justiça de então, mais “célere, moderna e justa”. A reforma, aprovada por unanimidade, tinha como principais mudanças a separação nítida entre as carreiras dos magistrados do MP e os juízes; a instauração da responsabilidade dos juízes que poderiam ser obrigados a pagar do seu próprio bolso danos causados por erros seus; e ainda a limitação da ação penal do Ministério Público. O MP veria o seu papel limitado, sendo reduzido a uma espécie de “departamento organizado”. Previa ainda a possibilidade de o poder disciplinar sobre os magistrados passar para um organismo especial constituído, também, por elementos não magistrados e o estabelecimento de prazos máximos para a duração dos processos.
Maurizio Paniz, advogado e deputado do partido do Governo, referia a propósito que as mudanças propostas visam restaurar o equilíbrio entre réus e o Ministério Público e impor controles apropriados sobre investigadores.
Berlusconi denunciou durante anos a justiça italiana, acusando-a de ser politizada e de liderar uma cruzada contra ele. Em declarações televisivas a propósito das reformas afirmou: “o governo continuará trabalhando, e o Parlamento fará as reformas necessárias para garantir que os magistrados não sejam capazes de tentar destruir de forma ilegítima alguém que foi eleito pelos cidadãos”.
Em 2013, após condenação por fraude fiscal, ao assinar em Roma uma petição pela organização de seis referendos para reformar o sistema judicial, acusou os juízes de quererem deixá-lo “politicamente morto” e referiu ainda que “essas condenações são puramente políticas e visam eliminar-me para que outros se apoderem definitivamente do poder”.
Qualquer semelhança entre isto e aquilo que tem sido o discurso de alguns responsáveis políticos nas últimas semanas, não será pura coincidência.
As causas que invocam para a urgência numa reforma da justiça são as mesmas: a necessidade de controlar o Ministério Público e de o funcionalizar, submetendo-o a uma hierarquia mais rígida; a celeridade e a necessidade de fixar prazos máximos para as investigações; a existência de um controlo disciplinar mais apertado sobre os mesmos.
A verdadeira causa: não serem objeto de investigações criminais e escaparem impunes à ação da justiça.
Basta analisar os últimos trinta anos para verificarmos que a preocupação dos políticos com a reforma da justiça e do Ministério Público, em particular, vem sempre associada a processos judiciais criminais que envolvem políticos.
A justiça só assume relevância, nessas alturas, porque “bate à porta”.
No resto do tempo a justiça é o parente pobre do Estado, ignorado por completo, deixada à sua sorte.
Perante uma narrativa ardilosa e ludibriosa que se tenta sedimentar na opinião pública, os magistrados e as associações que os representam, não podem ficar calados.
Conforme resulta sustentado em acórdão do TEDH, na senda das recomendações do Conselho da Europa e outros instrumentos internacionais, proferido no processo 3594/19 (KÖVESI v. ROMANIA), de 5 de maio de 2020, a independência dos procuradores é um elemento chave para a manutenção da independência judicial. Os procuradores devem ser chamados a participar nas reformas dos sistemas judiciários e devem ter uma voz ativa em debates públicos quando essas reformas possam comprometer a sua independência.