BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 04-10-2021 por Adão Carvalho, Secretário-Geral do SMMP


Afinal, em vez de lançarem críticas para o ar, manifestamente infundamentadas, de um populismo básico, que nada credibilizam a classe política, seria bom que esclarecessem onde e quando é que naquele caso concreto o Tribunal agiu mal ou, melhor, como fundamentariam naquele caso um concreto perigo de fuga e quando. Dez dias antes? Um mês? Um ano?


A facilidade com que os partidos com assento parlamentar se unem em críticas ao sistema judicial a propósito de casos concretos, em clara contradição com as leis que aprovaram e sacudindo para os Tribunais a responsabilidade que só aos mesmos compete, é deveras preocupante.

Basta atentarmos no que se passou na última semana a propósito da pretensa “fuga à justiça” de João Rendeiro.

Afinal, em vez de lançarem críticas para o ar, manifestamente infundamentadas, de um populismo básico, que nada credibilizam a classe política, seria bom que esclarecessem onde e quando é que naquele caso concreto o Tribunal agiu mal ou, melhor, como fundamentariam naquele caso um concreto perigo de fuga e quando. Dez dias antes? Um mês? Um ano?

Desde o célebre processo “Casa Pia” que assistimos por parte do parlamento a alterações ao Código de Processo Penal no sentido de limitar quer a detenção fora de flagrante delito de um arguido, quer mesmo a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, sustentando-se tais alterações em pretensas violações do princípio da presunção de inocência e no recurso abusivo a tais instrumentos.

Tanto assim que na reforma operada pela Lei n.º 48/2007 o legislador limitou de tal forma a possibilidade de detenção de um arguido fora de flagrante delito, cingindo tal possibilidade apenas às situações em que houvesse fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado que, em 2010, perante a perceção inequívoca de que tal era manifestamente insuficiente, foi necessário proceder a nova alteração para abranger igualmente as situações em que estavam em causa exigências como o perigo de continuação da atividade criminosa, perturbação do inquérito ou mesmo a proteção da vítima.

O perigo de fuga exigido para a aplicação de uma medida de coação mais restritiva da liberdade que o termo de identidade e residência exige que do processo resulte evidenciado um concreto perigo de fuga.

A mera condenação do arguido em primeira instância numa pena de prisão efetiva não pode, à luz da atual legislação processual penal aprovada pela Assembleia da República, sustentar ou fundamentar um perigo concreto de fuga.

Também não é suficientemente o facto de o arguido ter interesses financeiros ou patrimoniais no estrangeiro ou ter poder económico para fugir.

Tais circunstâncias não passam de uma presunção ou perigo abstrato de fuga, mas que à luz da doutrina e jurisprudência unânimes não são suficientes para fundamentar a agravação do estatuto coativo do arguido.

Por outro lado, o termo de identidade e residência apenas vincula os arguidos a comunicarem ao processo, quando se ausentem da residência por mais de cinco dias, o local onde podem ser encontrados.

Se um arguido sempre compareceu quando convocado e igualmente sempre comunicou as suas ausências superiores a cinco dias, não pode o Tribunal concluir pela verificação em concreto do perigo de fuga e sustentar a aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade com base no mesmo.

Os partidos políticos não podem querer que os tribunais tomem decisões ilegais, isto é, contrárias às leis aprovadas na Assembleia da República.

Quando atacam o sistema de justiça estão a sacudir a água do capote e a não assumir as suas responsabilidades.

Se os grupos parlamentares entendem que perante uma condenação em primeira instância, que condene um arguido a uma pena de prisão efetiva, existe a necessidade de garantir a efetividade do cumprimento da pena com base numa presunção abstrata do perigo de fuga, então assumam as suas responsabilidades e cumpram a função para a qual foram eleitos, alterando a lei processual penal e retirando efeito suspensivo aos recursos, de forma a que o condenado inicie imediatamente o cumprimento da pena.

Não podem é de forma infundamentada e leviana atirar as culpas para o sistema de justiça, de forma a escaparem airosamente às suas responsabilidades e, para além disso, aproveitarem politicamente a situação para ensaiarem mais um ataque à autonomia e independência das magistraturas.

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