BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 13-11-2023 por Adão Carvalho, Presidente do SMMP

Pretender ver no normal exercício da ação penal, naquilo que é a obrigação do MP, qualquer relevância política ou onerar o MP com a responsabilidade de logo no início do inquérito adivinhar qual vai ser o seu desfecho, não faz qualquer sentido


A semana anterior foi marcada pela demissão do Primeiro-Ministro e pelo anúncio da dissolução da Assembleia da República por parte do Presidente e por um comunicado da Procuradoria-Geral da República a propósito de um processo em curso.

Todo o frenesim criado à volta desses dois factos e os comentários advindos de vários quadrantes a propósito dos mesmos, levam-me a aproveitar este artigo para contribuir para a reflexão e esclarecimento sobre alguns aspetos.

O primeiro prende-se com os requisitos necessários para que o Ministério Público instaure um inquérito (primeira fase do processo penal dirigida pelo Ministério Público).

Muitos se questionarão sobre o que leva o Ministério Público a abrir um inquérito.

Já não é a primeira vez que perante o conhecimento de um inquérito em que é investigado alguém com repercussão social logo se procura transmitir a ideia que o mesmo constitui o ataque a uma determinada classe profissional, a um determinado partido político ou mesmo a uma determinada pessoa.

Nos termos da nossa Constituição, ao Ministério Público compete exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade.

Sempre que o Ministério Público toma conhecimento da notícia de um crime tem que abrir um inquérito, não podendo deixar de o fazer com base em quaisquer critérios de oportunidade ou obediência a qualquer ordem interna ou externa, com exceção das situações expressamente previstas no Código de Processo Penal e que se prendem com crimes em que a atuação do MP está dependente do exercício do direito de queixa ou nas denúncias anónimas quando os factos denunciados não integram a prática de crime.

A notícia do crime é o conhecimento pelo Ministério Público de um conjunto de factos que podem ter um enquadramento criminal.

Não é, pois, necessário que a notícia do crime seja acompanhada de quaisquer elementos de prova.

Em face do cargo exercido por determinadas pessoas pode existir um foro específico e, nesse caso, qualquer magistrado do MP que tenha adquirido a notícia do crime deve transmiti-la ao magistrado do foro específico competente.

Portanto, a notícia de um crime e a instauração de um inquérito não comporta em si qualquer juízo por parte do MP sobre os factos de que obtém conhecimento, sendo essa a finalidade dessa fase, isto é, recolher prova com vista a determinar se existe crime e a determinar os responsáveis.

Pretender ver no normal exercício da ação penal, naquilo que é a obrigação do MP, qualquer relevância política ou onerar o MP com a responsabilidade de logo no início do inquérito adivinhar qual vai ser o seu desfecho, não faz qualquer sentido.

O segundo aspeto tem a ver com a natural diferença de posição que o Ministério Público e os demais sujeitos processuais evidenciam sobre a prova existente.

Essa dialética faz parte do processo e é ela que contribui para que no final exista um julgamento justo e equitativo.

A contraditoriedade e a dialética são partes estruturantes de um processo judicial.

O terceiro ponto prende-se com as fugas de informação dos processos e com a famosa violação do segredo de justiça, que algumas vozes apenas conseguem imputar ao Ministério Público.

Eu não sei quem é o responsável pelas fugas de informação nos processos e a sua divulgação aos órgãos de comunicação social, o único dado que me apraz verificar é que, nesta como em outras situações, enquanto o processo esteve na esfera reservada de intervenção do Ministério Público nada ressoou para o exterior.

Com base nesse dado quero acreditar que as fugas não têm origem no Ministério Público.

Uma última referência aos deveres de urbanidade e respeito que devem marcar as relações entre os vários intervenientes no sistema de justiça, independentemente dos interesses que defendem.

Independentemente da opinião que possamos ter sobre afirmações do Presidente do STJ, quarta figura do Estado, parece-nos no mínimo um ato de grosseria a alusão pública de que são conversa de tasca ou de café.

A qualidade da justiça depende da elevação dos seus atores e do cultivo de uma cultura de respeito e urbanidade recíprocos.

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