Constituição como arguido e inquérito arquivado? Sim, é normal

20/08/2024

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

Cerca de 75% dos inquéritos são arquivados. As causas dos arquivamentos são variadas, sendo as mais frequentes: inexistência de crime, desistência de queixa por parte do ofendido e recolha de prova inconclusiva.

Em ciclos de tempo relativamente curtos ressurge mediaticamente a discussão sobre o estigma da constituição de alguém como arguido.

A constituição como arguido de algum suspeito ocorre no âmbito de processos crime, por regra na sua fase de inquérito, isto é, na sua fase investigatória.

Quando falamos do inquérito estamos a reportar-nos a uma das fases do processo penal, no âmbito da qual se desenvolve a investigação de factos que constituem crime. 

Em causa está o conjunto das diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade destes, bem como a descoberta e recolha das provas em ordem a decidir pela acusação, arquivamento ou suspensão provisória do processo. O Ministério Público dirige a fase processual de inquérito e procura/analisa todas as provas, quer sejam desfavoráveis quer favoráveis aos suspeitos/arguidos.  

Nessa atividade é coadjuvado pelos órgãos de polícia criminal, os quais atuam sob a sua orientação e na sua dependência funcional. O inquérito deve terminar por despacho do Ministério Público, arquivando-o, suspendendo-o provisoriamente ou deduzindo acusação. 

O arguido pode ser definido como o suspeito que é formalmente constituído como sujeito processual e relativamente a quem corre um processo penal, como eventual responsável pelo(s) crime(s) que constitui(em) objeto desse mesmo processo. 

A constituição de arguido é realizada através da comunicação (oral ou por escrito) feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, estipulando-se na lei as diversas situações em que ocorre essa constituição de arguido, como por exemplo quando é detido, quando lhe é aplicada medida de coação ou quando presta declarações no processo.A constituição como arguido não é um ato apenas formal. 

O arguido, a partir da respetiva constituição, passa ter um conjunto de direitos e deveres processuais, por força do seu estatuto processual. Entre os direitos, destacam-se o direito de presença nos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito, de audiência, o direito ao silêncio (que não pode ser interpretado como presunção de culpa, atento o princípio da presunção de inocência), o direito a assistência por defensor, os direitos de intervenção e de recurso. E não é verdade que algum suspeito seja constituído como arguido sem que seja informado dos factos de que é suspeito.  

Apesar de todo o discurso mediático se centrar nos arguidos é de notar que não menos importante é o interesse das vítimas e da própria sociedade no exercício efetivo da ação penal.

Cerca de 75% dos inquéritos são arquivados. As causas dos arquivamentos são variadas, sendo as mais frequentes: inexistência de crime (é recolhida prova de que não houve qualquer crime), desistência de queixa por parte do ofendido (nos casos em que é admissível, extingue o procedimento criminal) e recolha de prova inconclusiva (só há acusação quando há indícios sérios e objetivos de que houve um crime e de quem foi o seu autor, sendo elevada a probabilidade de condenação deste em julgamento; se não houver indícios ou se estes não forem assim tão fortes, o inquérito deve ser arquivado).Nos processos que chegam a julgamento, há condenação em cerca de 85%.

Aquilo que é perfeitamente normal num inquérito e que tem que ser conjugado sempre com a presunção de inocência, de que beneficia qualquer arguido, transformou-se, mediaticamente (e por vezes politicamente), em algo diferente e do qual são extraídas conclusões extra processuais. 

A constituição como arguido não implica qualquer presunção de culpabilidade e é perfeitamente normal e usual que findo um inquérito, em que alguém foi constituído como arguido, este venha a ser arquivado. A fundada suspeita da prática de um crime que pode existir em determinado momento processual não equivale aos indícios probatórios necessários para ser deduzida acusação.

Todas as considerações mediáticas efetuadas a propósito da constituição de alguém como arguido são o reflexo dos tempos que vivemos.

O Ministério Público limita-se a aplicar a lei quando constitui algum suspeito como arguido e quando arquiva o inquérito em causa. 

*Uma nota final de solidariedade com os advogados portugueses e a Ordem dos Advogados na sua luta pela atualização de uma tabela de pagamento de honorários do acesso ao direito com quase 20 anos e, como tal, completamente desatualizada nos seus valores. 

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