Crimes de Violência Doméstica: Como fazer omeletes sem ovos

03/06/2025

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

É fundamental que a sociedade esteja ciente das dificuldades enfrentadas pelos magistrados que investigam estes crimes: a insuficiência de magistrados para dirigir as investigações, o excesso de volume processual, a escassez de meios materiais, a falta de funcionários afetos aos serviços do Ministério Público, a carência de técnicos para apoio e avaliação do risco das vítimas, a inexistência de gabinetes individuais, a ausência de espaços autónomos e adequados para a audição de vítimas e testemunhas.

Foi recentemente divulgado um relatório elaborado pelo GREVIO (Grupo de Peritos do Conselho da Europa para a Ação contra a Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica), que avalia a situação de Portugal no que respeita à implementação da Convenção de Istambul, em vigor desde 1 de agosto de 2014. Este tratado internacional de direitos humanos constitui um marco fundamental na luta contra a violência de género e a violência doméstica, estabelecendo um quadro jurídico abrangente que visa, entre outros objetivos, prevenir a violência contra as mulheres, proteger as vítimas e erradicar todas as formas de violência de género.

Com a ratificação da Convenção, Portugal assumiu o compromisso de adotar políticas públicas e medidas concretas para eliminar a violência contra as mulheres e a violência doméstica, incluindo a aprovação de legislação adequada, a formação de profissionais, a sensibilização da sociedade e a criação de serviços de apoio às vítimas.

O relatório do GREVIO destaca avanços significativos nesta área, nomeadamente o impacto positivo na confiança das vítimas decorrente da criação dos Gabinetes de Apoio à Vítima (GAV) e das Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), iniciativas da Procuradoria-Geral da República.

No entanto, o relatório apresenta também um conjunto de críticas que merecem reflexão. Uma das principais preocupações prende-se com a aplicação de sanções judiciais consideradas “brandas e desproporcionais”, bem como com aquilo que é qualificado como persistência de “atitudes patriarcais” no sistema judicial. Embora não se considere que estas situações ocorram de forma generalizada, existirão casos pontuais que justificam esta observação.

O GREVIO sublinha ainda a insuficiência da formação especializada dirigida aos magistrados. Apesar de o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) ministrar formação inicial e complementar nesta matéria, o relatório defende que esta formação deveria ser obrigatória. É do interesse de todos os magistrados que exercem funções nesta área beneficiar da melhor preparação possível, não havendo impedimento para que a formação assuma carácter obrigatório.

A especialização de todos os profissionais envolvidos neste domínio — incluindo polícias, oficiais de justiça, advogados, magistrados do Ministério Público e magistrados judiciais — só poderá ser alcançada através de uma formação multidisciplinar adequada. Acresce ainda a importância de garantir aos magistrados o acesso a assessoria técnica multidisciplinar, de modo a assegurar uma resposta mais eficaz e informada à complexidade destes casos.

Apresentam-se, de seguida, alguns dados estatísticos referentes ao ano de 2024, que ajudam a enquadrar e compreender melhor a dimensão do fenómeno em análise: as autoridades policiais registaram 30.086 ocorrências de violência doméstica; 1.345 arguidos foram sujeitos a prisão preventiva; 4.057 foram condenados a penas de prisão efetiva; 3.637 arguidos ficaram sujeitos a medidas de coação com vigilância eletrónica; 10.696 condenados frequentaram programas para agressores, tanto em meio prisional como na comunidade; e, tragicamente, registaram-se 22 vítimas mortais em contexto de homicídio conjugal.

Estes números evidenciam, de forma inequívoca, a gravidade e a extensão do problema, o que deveria mobilizar todos os recursos disponíveis para um combate efetivo e eficaz a este crime, bem como para a implementação de medidas preventivas realmente eficazes.

O ano de 2000 marcou um avanço importante no combate à violência doméstica em Portugal, com a entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, de 27 de maio. Esta legislação representou uma alteração profunda na abordagem legal e social deste fenómeno, ao passar a considerar a violência doméstica como crime público. Tal alteração permitiu ao Ministério Público iniciar o processo penal independentemente da vontade da vítima, bastando para tal uma denúncia ou o simples conhecimento do crime. A lei veio, assim, reconhecer que a violência doméstica não constitui apenas um problema privado, mas sim uma questão de interesse público.

Em 2019, a Procuradoria-Geral da República implementou, nos Departamentos de Investigação e Ação Penal Regionais, as Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD) de Lisboa, Sintra, Seixal e Porto, compostas por Núcleos de Ação Penal (NAP) e Núcleos de Família e Crianças (NFC). Estas unidades especializadas têm como objetivo reforçar a eficácia da resposta institucional, promovendo a especialização da investigação, a celeridade dos procedimentos e a articulação com os órgãos de polícia criminal e com entidades dedicadas à proteção das vítimas.

A atuação dos magistrados do Ministério Público nesta área encontra-se detalhadamente regulada por uma Diretiva da Procuradoria-Geral da República, que uniformiza os procedimentos a adotar. Sempre que toma conhecimento da prática de um crime de violência doméstica, o Ministério Público abre um inquérito e promove, de imediato, a realização dos atos processuais necessários para decidir sobre a proteção urgente da vítima. A inquirição da vítima deve ocorrer no mais curto espaço de tempo possível, preferencialmente no prazo de 72 horas, podendo incluir a recolha de declarações para memória futura. Caso se conclua pela necessidade de proteção, são emitidos mandados de detenção fora de flagrante delito, para aplicação de medidas de coação ao agressor.

Sempre que existam informações sobre a presença de crianças em contextos de violência doméstica, independentemente de serem ou não vítimas diretas, o Ministério Público comunica de imediato ao Tribunal de Família e Menores, de modo a garantir a coordenação e proteção das crianças envolvidas.

No âmbito da investigação criminal da violência doméstica, é essencial reforçar a presença de magistrados do Ministério Público especializados, condição indispensável para um combate mais eficaz a este fenómeno. Para tal, é necessário aumentar o número de magistrados disponíveis, de modo a permitir que possam receber formação específica, em consonância com as recomendações do GREVIO. Paralelamente, é fundamental que estes profissionais tenham uma carga processual mais equilibrada, pois não se pode exigir a quem tem sob sua responsabilidade entre 600 e 1.000 processos de inquérito por violência doméstica, todos de natureza urgente, que consiga ir além do trabalho já realizado atualmente.

Importa ainda salientar que muitos magistrados afetos a esta área se encontram em risco elevado ou muito elevado de burnout, uma situação que, sendo transversal à magistratura, se torna especialmente grave neste domínio, dada a exigência acrescida do trabalho. Esta realidade já foi referida no recente estudo do Observatório da Justiça sobre desgaste profissional e burnout.

É fundamental que a sociedade esteja ciente das dificuldades enfrentadas pelos magistrados que investigam estes crimes: a insuficiência de magistrados para dirigir as investigações, o excesso de volume processual, a escassez de meios materiais, a falta de funcionários afetos aos serviços do Ministério Público, a carência de técnicos para apoio e avaliação do risco das vítimas, a inexistência de gabinetes individuais, a ausência de espaços autónomos e adequados para a audição de vítimas e testemunhas, e a falta de software que permita, por exemplo, a extração de mensagens de texto de telemóveis — um procedimento frequentemente necessário na recolha de prova nestes casos.

É frequente que os magistrados partilhem gabinetes com outros colegas, sendo raras as salas específicas que garantam a privacidade exigida para a audição das vítimas. Muitas vezes, as vítimas de violência doméstica são ouvidas em espaços comuns ou partilhados, sem qualquer privacidade e sujeitos a múltiplos constrangimentos, havendo situações em que, por falta de condições, as audições ocorrem até em corredores. Perante esta realidade, é legítimo questionar que proteção pode o sistema de justiça realmente oferecer a estas vítimas. Torna-se, por isso, imperativo criar espaços físicos próprios, adequados e que assegurem a privacidade necessária para ouvir vítimas e testemunhas de crimes de violência doméstica.

Neste contexto, é indispensável dotar o Ministério Público dos meios necessários para investigar, recolher prova, ouvir vítimas e testemunhas com privacidade e segurança, bem como avaliar adequadamente os riscos envolvidos. Por outro lado, impõe-se uma alteração legislativa, a renúncia ao direito previsto no artigo 134.º do Código de Processo Penal (recusa de depoimento de parentes e afins) deve ser irretratável, o que permitiria uma maior proteção da vítima e dos direitos do arguido, evitando que a prova recolhida em inquérito se torne ineficaz caso a vítima ou familiares optem pelo silêncio em julgamento.

Não se pode exigir resultados sem garantir os meios indispensáveis para uma atuação célere e eficaz; em suma, não é possível fazer omeletes sem ovos.

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