SÁBADO, 03-08-2021 por Paulo Lona, Secretário-Geral do SMMP

Seria interessante, no domínio do sistema de justiça, ver os habituais protagonistas deste debate sobre o corporativismo começarem a olhar para a sua própria casa quando se trata de debater a participação da sociedade civil nos órgãos de governo (ou autogoverno) das profissões do judiciário.

 

Um dos debates mais recorrentes no domínio do sistema de justiça é aquele que se ocupa do corporativismo.

Este termo é utilizado, além do mais, para designar situações em que um grupo de profissionais de determinada área, organizados coletivamente, defendem os seus interesses de forma a prejudicar os interesses coletivos (situação em que o dito corporativismo assume contornos socialmente negativos).

Curiosamente, ou não, este debate é quase sempre fomentado pelos mesmos protagonistas.

Entre esses protagonistas estão, habitualmente, alguns advogados que pertencem aos maiores escritórios de advogados.

Esses debates são centrados, por tais protagonistas, invariavelmente, no âmbito dos Conselhos Superiores das Magistraturas (Conselho Superior da Magistratura, Conselho Superior do Ministério Público e Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que existe sempre, nesses mesmos Conselhos, um grande número de vogais advogados (por vezes até os mesmos que vão transitando de um Conselho para outro), indicados pelo poder político.

A profissão mais representada nos Conselhos Superiores da área da Justiça é a Advocacia, o que acontece nas atuais e nas anteriores composições destes Conselhos.

O Conselho Superior do Ministério Público tem na sua composição 5 membros eleitos pela Assembleia da República e 2 membros designados pela Ministra da Justiça, sendo atualmente 5 advogados.

O Conselho Superior da Magistratura tem na sua composição 2 membros designados pelo Presidente da República e 7 membros eleitos pela Assembleia da República, sendo atualmente 3 advogados.

O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais tem na sua composição 2 membros designados pelo Presidente da República e 4 membros eleitos pela Assembleia da República, sendo atualmente 4 advogados.

A que propósito surge esta questão?

Tive recentemente a oportunidade de ler um artigo de opinião escrito por um advogado que, reagindo a diversas posições tornadas publicas em relação à atuação de um outro advogado, simultaneamente vogal do Conselho Superior do Ministério Público, colocava a seguinte questão: quem tem medo dos advogados?

Esse artigo procurava descentrar o debate da atuação em concreto de um advogado e conselheiro, recentrando-o na presença dos advogados nos Conselhos, algo que nunca foi de per si colocado em causa. O que foi objeto de critica, com toda a legitimidade, nomeadamente por parte Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, foi a incompatibilidade que existe neste domínio entre os deveres que assume um advogado quando aceita integrar o Conselho Superior do Ministério Público e uma determinada conduta pública violadora dos deveres estatutários (que se lhe aplicam por força do artigo 31.º, n.,1, do Estatuto do Ministério Público). Não é a qualidade de advogado, ao contrário do que se quer fazer crer, que está em causa. O que está em causa são os deveres a que qualquer membro do Conselho Superior do Ministério Público, seja ele advogado ou não, está sujeito (existe uma equiparação nos direitos e deveres em relação aos vogais magistrados).

Será salutar, quer para a Magistratura quer para a Advocacia, a presença de advogados num Conselho Superior, como o do Ministério Público, que não aceitam as regras do jogo e se pretendem fazer valer dessa dupla qualidade de Advogados e Conselheiros, não respeitando os deveres que lhes advêm desta última qualidade? Cremos que tal não é salutar para o próprio sistema de Justiça.

Não deixa de ser curioso verificar que, não estando em causa a presença de per si de advogados nos Conselhos, se invoca a necessidade de quebrar “lógicas de aparelho ou solidariedades de corporação” para justificar a presença dos advogados nos Conselhos. Ora, seria interessante que os protagonistas que invocam esse argumento não se limitassem a olhar para o exterior e aplicassem essa mesma lógica no âmbito interno da corporação que representa os Advogados – a Ordem dos Advogados.

O debate que verdadeiramente está por fazer é o que respeita ao autogoverno de uma ordem profissional de interesse público como a Ordem dos Advogados e a sua abertura à sociedade civil.

Uma ordem profissional é uma pessoa coletiva de interesse público.

São associações públicas, constituídas pelos profissionais de uma área e que representam uma profissão ela própria dotada de interesse público. Visam a certificação para o exercício da profissão, a definição e imposição de regras técnicas e deontológicas, o estabelecimento e implementação de um regime disciplinar, a formação e a defesa genérica de interesses coletivos da profissão.

É o Estado que delega nessas associações as tarefas de regulação do acesso e exercício de determinada profissão.

Também numa ordem profissional existe a necessidade de acautelar, por força das funções de natureza pública que esta desempenha, a prevalência do interesse público.

Ou será que neste âmbito já não se verifica a necessidade de quebrar “lógicas de aparelho ou solidariedades de corporação”?

Não deveria ser assegurada a representatividade da sociedade civil também nestas ordens?

Não se deveria equacionar a abertura para a presença de outros profissionais nos órgãos destas ordens?

Aplicando a mesma lógica, não iria a presença de outros profissionais, como professores universitários, enriquecer a corporação.

Não deixando de reconhecendo a especificidade das ordens profissionais relativamente aos conselhos, será que esta abertura institucional à sociedade civil não deveria merecer um debate sério por parte dos profissionais e da ordem em causa.

Seria interessante, no domínio do sistema de justiça, ver os habituais protagonistas deste debate sobre o corporativismo começarem a olhar para a sua própria casa quando se trata de debater a participação da sociedade civil nos órgãos de governo (ou autogoverno) das profissões do judiciário.

Ou, será que é mais fácil olhar para o quintal do vizinho do que para o nosso?

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