Eliminação da violência contra as mulheres

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
A violência contra mulheres e raparigas persiste como uma das mais prevalentes e generalizadas violações dos direitos humanos à escala global.
No passado dia 25 de novembro foi assinalado o dia internacional para a eliminação da violência contra as mulheres, data instituída pela Resolução n.º 52/134 da ONU, que visa alertar para a violência física, psicológica, sexual e social que atinge as mulheres.
A data foi escolhida em memória das irmãs Mirabal, ativistas políticas assassinadas em 1960 na República Dominicana.
A violência contra mulheres e raparigas persiste como uma das mais prevalentes e generalizadas violações dos direitos humanos à escala global.
As estatísticas são alarmantes: aproximadamente uma em cada três mulheres em todo o mundo já foi vítima, pelo menos uma vez na vida, de violência física e/ou sexual perpetrada, em muitos casos, por um parceiro íntimo.
O ano de 2023 revelou uma realidade sombria: pelo menos 51.100 mulheres perderam a vida às mãos de parceiros ou familiares.
Esta realidade sublinha a urgência de ações concertadas a nível global para combater este flagelo social, proteger as vítimas e prevenir futuros atos de violência contra mulheres e raparigas.
A Convenção de Istambul, oficialmente conhecida como Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, entrou em vigor em 1 de agosto de 2014.
Este tratado internacional de direitos humanos representa um marco significativo na luta contra a violência de género e doméstica e estabelece um quadro jurídico abrangente que visa, além do mais, prevenir a violência contra mulheres e a violência doméstica, proteger as vítimas e eliminar todas as formas de violência contra as mulheres.
Ao ratificar a Convenção, Portugal comprometeu-se a implementar políticas públicas e medidas concretas para erradicar a violência contra as mulheres e a violência doméstica. Isto inclui a adoção de legislação adequada, a formação de profissionais, a sensibilização da sociedade e a criação de serviços de apoio às vítimas.
A proteção das vítimas no processo penal assume assim especial relevância e sensibilidade.
O Ministério Público, enquanto titular da ação penal a quem que cabe dirigir a investigação, assume aqui um papel preponderante.
Em 2000, Portugal deu um passo significativo no combate à violência doméstica com a promulgação da Lei n.º 7/2000, de 27 de maio. Esta legislação marcou uma mudança fundamental na abordagem legal e social deste problema. A violência doméstica passou a ser considerada um crime público, o que permite que o Ministério Público inicie o processo penal independentemente da vontade da vítima, bastando uma denúncia ou o conhecimento do crime. A lei reconheceu que a violência doméstica não é apenas um problema social privado, mas uma questão de interesse público.
Em 2019, a Procuradoria Geral da República implementou, nos Departamentos de Investigação e Ação Penal Regionais, as Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD) de Lisboa, Sintra, Seixal e Porto. Estas secções são compostas por Núcleos de Ação Penal (NAP) e Núcleos de Família e Crianças (NFC).
Estas unidades especializadas visam aumentar a eficácia da atuação, especializando a investigação, aplicando procedimentos mais céleres e apostando na articulação com os órgãos de polícia criminal e entidades vocacionadas para a proteção das vítimas.
O Ministério Público, ao tomar conhecimento da prática de um crime, inicia um inquérito e realiza ou ordena a realização imediata dos atos processuais necessários para decidir sobre a proteção urgente da vítima. A inquirição da vítima deve ocorrer no menor tempo possível, preferencialmente dentro de 72 horas, podendo incluir declarações para memória futura. Caso se conclua pela necessidade de proteção, são emitidos mandados de detenção fora de flagrante delito para aplicar medidas de coação ao agressor.
Quando há informação sobre a presença de crianças em situações de violência doméstica, independentemente de serem alvos diretos da violência, o Ministério Público comunica imediatamente ao Tribunal de Família e Menores para coordenar a proteção das crianças.
Contudo, a escassez de magistrados do Ministério Público impossibilita o alargamento ao resto do país (pelo menos aos grandes centros urbanos) destas unidades especializadas e dificulta o adequado funcionamento das que existem.
É importante que a sociedade tenha a noção das dificuldades com que se deparam os magistrados que investigam estes crimes: a insuficiência do número de magistrados que dirigem a investigação, o excesso de volume de trabalho (existem magistrados que tem a seu cargo mais de 1.000 inquéritos), a escassez dos meios materiais ao dispor, a falta de funcionários afetos aos serviços do Ministério Público, a escassez dos técnicos que prestam apoio e fazem as avaliações do risco para as vítimas, a falta de gabinetes individuais, a falta de espaços autónomos e adequados para audição de vítimas e testemunhas e a falta de software que permita algo tão simples como a extração de mensagens de texto de um telemóvel (sendo muito frequente que a recolha de prova nestes crimes obrigue a tal).
Existem muitas situações de magistrados que partilham gabinete com outros e quase não existem salas específicas que lhes permitam, com a privacidade que a situação impõe, proceder a audição das vítimas.
É em espaços comuns/partilhados (com muitos outros), sem qualquer privacidade e com os inerentes constrangimentos, que as vítimas de violência doméstica são muitas vezes ouvidas.
Sem salas próprias para audição das vítimas (que por falta de condições chegam a ser ouvidas em corredores) que proteção pode o sistema de justiça conferir a estas?
Impunha-se a existência de espaços físicos próprios, adequados e que privilegiassem a privacidade para ouvir vítimas e testemunhas de crimes de violência doméstica.
É indispensável, neste tipo de criminalidade, dotar o Ministério Público dos meios que permitam investigar, recolher prova, ouvir vítimas e testemunhas com privacidade e em segurança e avaliar os riscos existentes.
Por outro lado, será de ponderar que a renúncia ao direito previsto no artigo 134.º, do Código de Processo Penal (recusa de depoimento de parentes e afins), seja irretratável, o que permitiria a maior proteção da vítima e dos direitos do arguido e impediria que a prova produzida no inquérito se desmoronasse quando a vítima e familiares se remetem ao silêncio.