BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 27-01-2019 por Adão Carvalho, Secretário-Geral do SMMP
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Importaria ainda consagrar um conjunto de medidas de proteção para os arguidos que decidem colaborar, quer durante a investigação, designadamente a possibilidade de serem julgados em separado e terem a sua identidade preservada, quer em sede de execução da pena com a possibilidade de cumprirem a prisão em estabelecimentos prisionais diferenciados. Adão Carvalho é o nome mais recente a juntar-se à Bolsa de Especialistas VISÃO e escreve sobre Justiça
Nos últimos tempos várias vozes têm vindo a público apontar a “delação premiada” como um instrumento eficaz no combate à corrupção e em geral à criminalidade económico-financeira e que deveria ser importada para o nosso sistema.
Mas afinal o que é a “delação premiada”?
O termo “delação premiada” tem a sua origem no ordenamento jurídico brasileiro, onde se enraizou a partir da década de 90.
O que está em causa é um acordo celebrado entre o investigado ou condenado e o Ministério Publico, onde aquele em contrapartida de um conjunto de benefícios previstos na lei para além de confessar os crimes por si cometidos aceita fornecer elementos que permitem evitar o cometimento de crimes futuros ou auxiliar as autoridades judiciais e policiais a recolher provas contra os demais coautores no crime, possibilitando as suas prisões.
Tal como está juridicamente desenhado no sistema brasileiro é um meio de obtenção de prova.
Assiste-se, muitas vezes, a uma confusão da “delação premiada” com uma outra figura que noutros países tem feito o seu curso sob o rótulo de “justiça negociada”, que nada tem a ver aquela, como é o que sucede, por exemplo, com os acordos sobre a sentença penal, previstos na legislação alemã ou com o patteggiamento italiano e que se circunscrevem à confissão de crimes próprios e não à delação de terceiros.
O modelo brasileiro tem sido objeto de várias críticas, mesmo dentro da sociedade jurídica brasileira, pelo que antes de se avançar precipitadamente com qualquer proposta legislativa nessa matéria, como tem sido padrão do nosso legislador, importa uma adequada e cuidada ponderação dos prós e contras de tal figura e da sua compatibilização com o nosso sistema.
Não cuidaremos aqui das questões de compatibilidade constitucional da “delação premiada”, num ordenamento continental que assenta no princípio de legalidade e da obrigatoriedade da promoção penal, mas de complicada digestão para os leitores, mas sobre um conjunto de obstáculos práticos que essa figura tem evidenciado nos sistemas onde tem tido aplicação.
O primeiro, tem a ver com o facto de assentar na confissão de um dos comparticipantes do crime, com todas as fragilidades a isso inerentes.
O investigador imbuído do espírito de resolver rapidamente o processo e obter provas pode ser tentado a efetuar falsas promessas ao potencial colaborador ou prestar-lhe informações falsas sobre o processo comprometendo a validade do acordo e do referido meio de prova e inquinando todas as provas que vierem a ser obtidas através do mesmo.
Por seu lado aquele que aceita colaborar pode ludibriar as autoridades e conduzir a investigação para um logro ou desviar o rumo da investigação para terceiros com um grau de responsabilidade menor de forma a ilibar os verdadeiros responsáveis.
A segunda grande dificuldade relaciona-se com a eficácia da colaboração e com o momento em que é seguro ao investigador firmar o acordo com o “delator” no sentido de lhe conceder benesses em troca da sua colaboração.
Se não é qualquer colaboração que deve ser premiada, mas sim a que se revele eficaz na investigação, então apresenta-se como tarefa difícil determinar em que o momento a mesma se apresenta como verdadeira e relevante para a investigação.
Por outro lado, devemos sempre questionar se deverá ser merecedor de uma atenuação ou mesmo dispensa de pena o principal responsável e beneficiário do crime se decidir colaborar. Até, porque, apercebendo-se que existe uma investigação em curso e forte possibilidade de ser incriminado pode decidir colaborar de forma a, por um lado, manter para si as vantagens do seu crime e, por outro, ter uma pena mais branda que outros com um grau de intervenção muito menor.
Pensamos que, por ora, a solução deverá passar pelo aprofundamento das soluções já desenhadas no nosso sistema, no domínio dos crimes de corrupção e tráfico de estupefacientes, até porque nos parece mais coerente com a nossa cultura jurídico-penal um conceito de valoração positiva, em sede de atenuação ou mesmo dispensa de pena, daquele que voluntariamente decide contribuir de forma relevante para a descoberta da verdade e na medida da sua contribuição, enquanto manifestação de arrependimento e vontade de reparar o crime ou, dentro de certos limites, a possibilidade de suspensão provisória do processo em fase de inquérito, do que o conceito de “delator” interesseiro.
Importaria ainda consagrar um conjunto de medidas de proteção para os arguidos que decidem colaborar, quer durante a investigação, designadamente a possibilidade de serem julgados em separado e terem a sua identidade preservada, quer em sede de execução da pena com a possibilidade de cumprirem a prisão em estabelecimentos prisionais diferenciados.
Em qualquer dos casos garantindo a sua responsabilização penal e a recuperação das vantagens que do crime obtiveram.