“Entre marido e mulher não se mete a colher”

22/05/2024

Revista Visão
Ana Rita Granado
Procuradora da República e Presidente da Direcção Regional de Évora do SMMP

A população em geral deve apoiar as estratégias de combate à violência doméstica, sob pena de se tornar cúmplice da violência.

A expressão popular “entre marido e mulher não se mete a colher” perdurou durante longos anos na sociedade civil, o que significa que ninguém deve interferir nas relações conjugais, mesmo quando existem problemas de violência doméstica, pois o casal resolve sozinho os seus problemas.

É, pois, no seio familiar, entre paredes, que grassa o crime de violência doméstica, local onde o agressor se sente em segurança para exercer a sua autoridade e a vítima se sente desprotegida e vulnerável, mostrando-se renitente em denunciar: sente vergonha; sente receio; possui um sentimento de lealdade para com o agressor que a impele a não reagir.

Em Portugal, a Lei n.º 7/2000, de 27 de maio, atribuiu natureza pública ao crime de violência doméstica, reconhecendo-se finalmente que não estamos só perante um problema social, mas também de um problema de natureza pública, passando assim o Estado a assumir a existência de tal problemática.

A referida lei ao reconhecer a violência doméstica como crime público, já que o procedimento criminal não está dependente da apresentação de uma queixa, formal ou informal, por parte da vítima, sendo apenas necessário haver uma denúncia ou o conhecimento do crime, para que o Ministério Público promova o processo, veio representar um marco determinante no compromisso do Estado na proteção dos direitos das vítimas.

Em agosto de 2014 entrou em vigor a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica.

Esta Convenção, mais habitualmente denominada de Convenção de Istambul exorta o Estado Português, para além do mais, a proteger as mulheres contra todas as formas de violência, prevenir, processar criminalmente e eliminar a violência contra as mulheres e a violência doméstica.

O Ministério Público assume um papel determinante na prevenção, deteção e combate ao crime de violência doméstica, cooperando com órgãos de polícia criminal, serviços de saúde, educação, assistência social e comunitários.

A Procuradoria Geral da República no ano de 2019, procedeu à criação no âmbito dos Departamentos de Investigação e Ação Penal Regionais, Lisboa, Sintra, Seixal e Porto de Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), compostas por Núcleos de Ação Penal (NAP) e Núcleos de Família e Crianças (NFC).

Nas restantes comarcas do país, apesar de não existirem essas secções especializadas e, não obstante a manifesta escassez de magistrados e de oficiais de justiça, procura-se também dar uma resposta especializada e célere a cada um dos processos, com a atribuição dos processos a secções especializadas ou a magistrados específicos, mediante distribuição concentrada.

O Ministério Público enquanto titular da ação penal, logo que por qualquer meio, adquire a notícia da prática de um crime abre um inquérito e realiza ou manda realizar pela via mais expedita, os concretos atos processuais que o vão habilitar a decidir se há uma necessidade premente de proteção da vítima, procedendo-se à sua inquirição no mais curto espaço de tempo, preferencialmente sem ultrapassar as 72 horas, eventualmente com tomada de declarações para memória futura e, caso conclua pela positiva emitir mandados de detenção fora de flagrante delito para aplicação de medida de coação ao agressor, seguindo-se depois as subsequentes diligências de investigação até à prolação de despacho de acusação ou de arquivamento.

Havendo notícia da existência de crianças presentes num contexto de violência doméstica e independentemente de serem aquelas ou não destinatárias de atos de violência, o Magistrado do Ministério Público procede à comunicação de imediato ao colega no Tribunal de Família e de Menores, com vista também à articulação na proteção das crianças.

Magistrados, órgãos de polícia criminal (polícias), oficiais de justiça e demais entidades procuram sensibilizar a população e as vítimas para denunciarem este crime e também pela forma mais expedita assegurar que a cada uma seja dada uma resposta pronta e eficaz.

Apesar dos esforços de todas as entidades envolvidas, no ano de 2023, de acordo com o relatório de “Homicídios em contexto de violência doméstica- 2023- análise dos indicadores”, elaborado pelo Gabinete da Família, da Criança, do Jovem e do Idoso e contra a Violência Doméstica (GFCJIVD- PGR), a violência associada foi responsável pela verificação de 30 óbitos, 17 mulheres, 3 homens e 2 crianças (meninas), número que revela bem a enormidade do problema, ocorrendo os homicídios maioritariamente em situações de conjugalidade ou similar, atual ou pretérita.

Idealmente seria, pois, necessário haver um número mais elevado de magistrados, órgãos de polícia criminal (polícias) e oficiais de justiça afetos ao combate eficaz a este tipo de criminalidade, bem como um investimento adequado na sua formação. Contudo, a manifesta escassez de meios humanos e técnicos obsta a que, por vezes, a resposta seja tão pronta quanto seria desejável.

Conscientes desta dificuldade e do contributo positivo que podem dar na vida de cada uma das vítimas, por vezes situações de vida ou morte, com prejuízo da vida pessoal e familiar, os magistrados e demais intervenientes, dia a dia vão enfrentando as adversidades na tentativa de encontrar a resposta mais adequada e atempada para cada uma das vítimas, uma vez que este fenómeno apenas poderá ser controlado ou pelo menos mitigado, se os vários organismos e particulares que com ele lidam, cooperarem no sentido de se assegurar o apoio, acompanhamento e a proteção das vítimas, a reorganização familiar, a proteção de crianças e jovens ou de maiores vulneráveis e o tratamento da pessoa agressora.

A população em geral deve apoiar as estratégias de combate à violência doméstica, sob pena de se tornar cúmplice da violência.

Há, pois, que persistir, alertar, denunciar e combater este flagelo da violência doméstica, porque todo o ser humano merece ter uma vida livre de violência física ou psicológica.

 Quebremos o silêncio, preconceitos, dogmas, e deixemos a justiça atuar!

Transformemos o nosso, o vosso LAR, naquilo que efetivamente deve ser, lugar de proteção e sossego!

 

 

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