Equívocos sobre papel, natureza e funções da hierarquia do Ministério Público

13/05/2025

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

Um dos principais desafios de quem exerce funções de direção é a sobrecarga de processos atribuídos a cada magistrado, agravada pela manifesta carência de magistrados e pela escassez de oficiais de justiça, o que dificulta uma gestão equilibrada da carga de trabalho e compromete a eficiência na tramitação dos processos.

Há mais de um ano, abordei neste espaço a questão da hierarquia no Ministério Público, destacando a importância de que ela seja exercida com diálogo, construção de consensos e respeito pessoal e institucional mútuo.

Atualmente, qualquer cargo de chefia deve ser encarado sob esta perspetiva.

No entanto, olhando para a realidade, existe um longo caminho a percorrer neste domínio.

Sem desvalorizar o trabalho de muitos magistrados que desempenham as suas funções de direção com correção, inteligência emocional e compreensão pelas dificuldades sentidas diariamente (em tempos de carência de recursos), subsistem situações em que a atuação de alguns responsáveis se revela desadequada ao cargo que ocupam.

Um dos principais desafios de quem exerce funções de direção é a sobrecarga de processos atribuídos a cada magistrado, agravada pela manifesta carência de magistrados e pela escassez de oficiais de justiça, o que dificulta uma gestão equilibrada da carga de trabalho e compromete a eficiência na tramitação dos processos. Acresce a insuficiência de condições laborais adequadas, incluindo recursos materiais e apoio administrativo, obstáculos que dificultam a boa organização e o desempenho eficaz das funções do Ministério Público.

Mas, estes problemas/desafios só podem ser ultrapassados com uma hierarquia atuante, próxima, solidária, empática e que compreenda o seu papel, função, natureza e limites. A hierarquia no Ministério Público não se assemelha a uma estrutura militar ou administrativa tradicional, sendo de natureza funcional e processual.

A magistratura do Ministério Público é, por determinação expressa da Constituição da República Portuguesa, uma estrutura hierarquizada. O artigo 219.º, n.º 4, consagra que os magistrados do Ministério Público são responsáveis e “hierarquicamente subordinados”. Por sua vez, o artigo 3.º do Estatuto do Ministério Público esclarece que a autonomia do Ministério Público se traduz na vinculação a critérios de legalidade e objetividade, estando os seus magistrados apenas sujeitos às diretivas, ordens e instruções previstas na lei.

Importa sublinhar que esta hierarquia não se confunde com o modelo administrativo tradicional: os magistrados do Ministério Público não são meros funcionários inseridos numa cadeia de comando burocrática. A natureza da hierarquia no Ministério Público é eminentemente funcional, devendo articular-se com a autonomia interna dos magistrados. O seu objetivo é garantir a direção, coordenação e execução eficaz das múltiplas funções que o Estado atribui a esta magistratura. 

O exercício de funções de hierarquia deve privilegiar o diálogo e a procura de consensos, de modo a responder de forma adequada aos desafios quotidianos enfrentados pelos magistrados. Como tem sido reiterado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, é essencial uma relação de lealdade institucional recíproca, sendo preocupante a tendência para desvalorizar o diálogo e a consensualização por parte de alguns responsáveis hierárquicos. Um superior hierárquico no Ministério Público, atento à especificidade da relação funcional e à autonomia própria da magistratura, não pode ser alguém distante, que não escuta os magistrados sob a sua responsabilidade, limitando-se a emitir ordens sem procurar compreender a realidade concreta e mobilizar a adesão dos destinatários. 

Não se pretende, tampouco, que o superior hierárquico atue como o “capataz da fazenda”, devendo ter sempre presente os limites da sua função e dos poderes que o estatuto lhe atribui. Não podemos ter magistrados receosos da sua hierarquia direta, temendo avaliações negativas para efeitos de inspeção. O exercício de uma hierarquia desse tipo afeta a autonomia dos magistrados e é, na maioria dos casos, contraproducente, conduzindo ao desgaste profissional e, em situações extremas, a casos de burnout, com consequências negativas para o funcionamento do serviço (com consequentes baixa medicas, que se refletem também num aumento sucessivo do volume de trabalho dos outros magistrados e num incremento do risco de desgaste profissional destes). 

Há que parar para pensar e repensar a forma como, por vezes, a hierarquia é exercida. Hierarcas e subordinados são ambos magistrados e devem assumir essa condição em todas as circunstâncias, agindo sem favoritismos e promovendo o respeito mútuo. 

Recorrendo aos Professores da Universidade de Standford, especialistas em gestão e estudos sociológicos, Robert I. Sutton e Huggy Rao, “Projecto Fricção”, 2024, “As hierarquias não prestam quando têm demasiados níveis e são desequilibradas por regras e tradições ridículas, bem como quando os lideres agem como se as diferenças de poder fossem fixas e não flexíveis…Mark Templeton, antigo CEO da empresa Citrix, tem uma opinião muito interessante sobre a diferença entre a necessidade de uma hierarquia face ao modo como as pessoas devem ser tratadas: É preciso assegurar-se que nunca confunde a hierarquia necessária para gerir a complexidade com o respeito que as pessoas merecem. É aí que muitas organizações descarrilam, ao confundir respeito com hierarquia, e ao pensarem que estar na base da hierarquia significa merecer menos respeito e vice-versa. Portanto, a hierarquia é um mal necessário na gestão da complexidade mas de forma alguma tem que ver com o respeito que se deve a um indivíduo”.  

Seguindo ainda a mesma obra destes autores, “quando os problemas de fricção abundam, ruminar e procurar culpados consome energia que poderia ser canalizada para encontrar soluções”. Líderes que culpam e castigam aqueles que levantam problemas e que apontam erros de colegas, criam culturas de medo – ambientes onde as pessoas são pressionadas a esconder os problemas em vez de os enfrentar e procurar melhorias em conjunto.  

O modelo organizativo do sistema judiciário exige que quem exerce funções de direção no Ministério Público, em todos os níveis, promova a resolução dos problemas em proximidade, o que nem sempre se verifica. O exercício do poder hierárquico funcional não se pode restringir à emissão de ordens ou instruções, sem ouvir os visados e sem procurar consensos efetivos. 

Deve evitar-se também aquilo que citados especialistas em gestão de recursos humanos qualificam de “participação de fachada”, em que se pede opinião aos intervenientes apenas para cumprir um ritual, ignorando as ideias apresentadas. Esta prática é um desperdício de tempo, enfraquece a iniciativa e é facilmente percecionada, transmitindo que os líderes não se preocupam com os sentimentos das pessoas nem com a melhoria da organização. Estudos no âmbito da justiça organizacional demonstram que o engano e o desrespeito inerentes à participação de fachada alienam e enfurecem “trabalhadores” e outros intervenientes. 
A hierarquia deve, em primeira linha, assumir a missão de permitir que os magistrados subordinados façam bem o seu trabalho e se sintam respeitados e valorizados. 

Reforçar o diálogo, a consensualização, a solidariedade, o respeito mútuo e a lealdade institucional nas relações de direção e hierarquia dentro da magistratura do Ministério Público é essencial para que a sua missão constitucional seja cumprida de forma eficaz e legítima. 

 

 
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