Equívocos: suspeitos, arguidos e estranhos ao processo penal

18/02/2025

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

Existem pessoas que, embora inicialmente suspeitas, não são constituídas como arguidos por falta de provas que justifiquem tal ação.

Em Portugal, periodicamente ressurge o debate sobre o estigma associado à constituição de alguém como arguido ou à divulgação pública de suspeitas relacionadas com investigações em curso. 

Na fase de inquérito, conduzida pelo Ministério Público com o apoio dos órgãos de polícia criminal, procura-se apurar a existência de um crime, identificar os seus autores e recolher provas. O objetivo é reunir elementos suficientes para fundamentar uma decisão de acusação, arquivamento ou suspensão provisória do processo.

No âmbito de um processo criminal em Portugal, é fundamental distinguir entre diferentes categorias de pessoas envolvidas ou mencionadas numa investigação. Esta distinção é crucial para compreender o processo penal e evitar equívocos sobre o estatuto legal de cada indivíduo.

Em primeiro lugar, temos os suspeitos contra os quais existem indícios fundados da prática de um crime. Quando estes indícios são suficientemente sólidos, o suspeito é formalmente constituído como arguido. Este estatuto confere-lhe direitos e deveres específicos no âmbito do processo. Entre os direitos, destacam-se o de estar presente nos atos processuais que lhe digam respeito, o direito de audiência, o direito ao silêncio (que não pode ser interpretado como admissão de culpa), o direito a assistência jurídica e os direitos de intervenção e recurso.

Por outro lado, existem pessoas que, embora inicialmente suspeitas, não são constituídas como arguidos por falta de provas que justifiquem tal ação. Estas permanecem como meros suspeitos, sem o estatuto formal de arguido.

Há ainda uma terceira categoria: indivíduos que não são alvo de investigação, mas cujos nomes surgem na opinião pública como estando de alguma forma relacionados com os factos em investigação. É importante sublinhar que estas pessoas não são objeto de investigação formal e, consequentemente, não serão mencionadas em qualquer despacho de acusação ou arquivamento.

A constituição de arguido ocorre tipicamente durante a fase de inquérito, que é a etapa investigatória do processo criminal. Este estatuto é atribuído através de uma comunicação oficial, que pode ser oral ou escrita, feita por uma autoridade judiciária ou policial, em situações previstas na lei, como por exemplo, em caso de detenção ou aplicação de medidas de coação.

É fundamental compreender que a constituição de alguém como arguido não implica culpabilidade. Este ato processual indica apenas a existência de indícios suficientes para justificar uma investigação mais aprofundada, visando proteger os direitos do suspeito e assegurar uma investigação justa e transparente.

Infelizmente, o que é um procedimento normal num inquérito, sempre conjugado com a presunção de inocência, tem sido frequentemente distorcido e, por vezes, politicamente instrumentalizado. Esta situação leva à extração de conclusões extra processuais infundadas e potencialmente prejudiciais.

É importante sublinhar que a constituição como arguido não implica qualquer presunção de culpabilidade. É perfeitamente normal e comum que, após a conclusão de um inquérito em que alguém foi constituído arguido, o processo venha a ser arquivado. Isto aplica-se ainda mais a pessoas que são apenas mencionadas na comunicação social como estando ligadas a uma investigação, sem que efetivamente o estejam.

A existência de uma suspeita fundada da prática de um crime num determinado momento processual não equivale aos indícios probatórios necessários para a dedução de uma acusação. O limiar probatório para acusar é significativamente mais elevado do que para constituir alguém como arguido.

As especulações mediáticas que frequentemente acompanham a constituição de alguém como arguido são um reflexo da sociedade de informação em que vivemos, onde a rapidez da notícia muitas vezes se sobrepõe à sua precisão e contextualização adequada.

É crucial recordar que o Ministério Público, ao constituir um suspeito como arguido ou ao arquivar um inquérito, está simplesmente a cumprir e a aplicar a lei, sem qualquer julgamento prévio de culpabilidade.

No sistema judicial português, o arquivamento de processos criminais pode ocorrer por diversas razões, sendo as mais comuns a inexistência de crime, a desistência de queixa e a insuficiência de provas. 

No primeiro caso, a investigação revela que não houve qualquer ilícito criminal, levando ao encerramento do inquérito por falta de fundamento. A desistência de queixa, possível apenas em certos tipos de crime, permite ao ofendido retirar a queixa, extinguindo assim o procedimento criminal. Quanto à insuficiência de provas, ocorre quando as evidências recolhidas são inconclusivas ou insuficientes para sustentar uma acusação. 

Para que haja acusação, é necessário que existam indícios sólidos e objetivos da ocorrência de um crime e da identidade do seu autor, bem como uma elevada probabilidade de condenação em julgamento. 

Se os indícios forem fracos ou inexistentes, o Ministério Público opta pelo arquivamento do inquérito. É importante notar que o arquivamento não implica necessariamente que não tenha ocorrido um crime, mas sim que não foi possível reunir provas suficientes para sustentar uma acusação com perspetivas razoáveis de condenação em tribunal.

Em suma, o sistema judicial português enfrenta um desafio complexo no que toca à perceção pública do estatuto de arguido. Apesar de ser um procedimento legal normal, concebido para proteger os direitos dos suspeitos e assegurar uma investigação equitativa, é frequentemente mal interpretado pela sociedade e pelos meios de comunicação social. Esta distorção pode resultar em julgamentos precipitados e injustos na praça pública, prejudicando a reputação de indivíduos que podem ser inocentes. É fundamental promover uma maior literacia jurídica junto da população, sublinhando que a constituição de arguido não equivale a uma presunção de culpa, que o arquivamento de processos é uma ocorrência comum e legítima, e que o patamar probatório para deduzir uma acusação é significativamente mais elevado do que para constituir alguém como arguido.

Só através de uma compreensão mais aprofundada e equilibrada do processo penal poderemos garantir que o sistema judicial cumpre eficazmente o seu papel, salvaguardando simultaneamente os direitos individuais e o interesse público.

 

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