No fim-de-semana passado a Associação Sindical dos Juízes Portugueses e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público deliberaram tomar medidas contra o Ministério da Justiça, designadamente a realização de uma greve.
Não é comum os magistrados efectuarem greves e, no passado, tal só sucedeu quando esteve em causa um ataque ao núcleo essencial das magistraturas portuguesas ou a direitos basilares dos magistrados.
A pergunta que se impõe agora é, quais as razões que levaram os magistrados portugueses a ponderarem a adopção de medidas tão extremas?
No que toca ao Ministério Público, o documento de trabalho que foi remetido pelo Ministério da Justiça é quase provocatório.
A direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público apresentou vários contributos para a revisão do respectivo estatuto e a generalidade das propostas não foi tomada em consideração.
O documento apresentado consagra propostas discriminatórias, persecutórias e que atentam contra os direitos mais elementares dos magistrados.
Estipulou-se um regime de mobilidade específico para os magistrados do Ministério Público, sem paralelo no sector público ou privado, sendo certo que a Constituição da República Portuguesa consagra a inamovibilidade dos magistrados como garantia da boa administração da Justiça.
Em muitos estados autoritários, a transferência de magistrados para longe da sua residência foi utilizada frequentemente como instrumento de pressão e condicionamento de decisões.
A opção por um regime mais desfavorável do que aquele que é aplicável aos restantes trabalhadores indicia claramente que se pretende discriminar os magistrados do Ministério Público e condicionar a autonomia das suas decisões.
Por outro lado, definem-se uma série de infracções disciplinares que reflectem qual o conceito de magistratura que se pretende impor, ou seja, uma magistratura fortemente hierarquizada em que ” o respeitinho” é muito bonito.
Em vez de se caminhar no aperfeiçoamento de uma magistratura própria de um sistema democrático, caminha-se no sentido da militarização da magistratura do Ministério Público.
Esta vertente militar é bem patente em várias normas, designadamente naquela que permite obrigar magistrados com mais de 70 anos de idade a regressar ao serviço, como se estivessem na reserva militar ou outra que obriga os magistrados a ficarem impedidos de cessarem funções se tiverem iniciado qualquer julgamento.
Quem tiver cerca de 70 anos de idade e inicie um julgamento como o do BPN, já sabe que só poderá cessar as suas funções e gozar a merecida reforma quase aos 80 anos de idade.
Será que se pretende que os magistrados continuem firmes no seu posto até falecerem?
Será que é bom para o sistema de justiça manter magistrados com esta idade a assegurar julgamentos, não se olvidando que necessariamente irão aligeirar a produção de prova para se reformarem mais rapidamente?
Será que, por forma a colmatar a falta de magistrados resultante da falta de planeamento na admissão dos quadros suficientes, é admissível impedir que magistrados com 40 ou 45 anos de carreira possam descansar?
Por último, propõe-se um novo regime de carreira nunca antes discutido ou testado que aniquilará a possibilidade de progressão dos magistrados mais novos.
Os magistrados deixarão de ter incentivo para se dedicarem à profissão e realizarem um trabalho de qualidade, pois saberão que o sacrifício da sua vida pessoal e familiar não será recompensado com a promoção à categoria seguinte.
Apesar de todas as suas falhas, o sistema de justiça português só tem funcionado devido ao enorme sacrifício pessoal dos magistrados e funcionários judiciais que todos os dias fazem serões e trabalham aos fins-de-semana para tentar manter o trabalho em dia.
Desmotivar os magistrados mais jovens terá sérias repercussões no sistema de Justiça.
Ao invés da carreira plana proposta pelo SMMP que privilegia o mérito, consagrou-se a terraplanagem da carreira.
A gravidade do que é proposto vai para além das repercussões numa classe profissional, mas afectará todo o sistema de Justiça e o cidadão.
Há quem pense que a aprovação de um estatuto que condicione fortemente a autonomia dos magistrados do Ministério Público individualmente considerados e reforce uma vertente hierárquica, faça parte de um plano mais vasto que inclua a nova nomeação do Procurador-Geral da República.
Se se eliminarem as resistências internas no Ministério Público e se for estabelecido um poder fortemente hierarquizado que sancione quem se desvie das linhas definidas superiormente, o Governo que indicar o nome do próximo Procurador-Geral da República poderá ter uma influência sobre a investigação criminal nunca vista até agora.
É de salientar que após o processo Casa Pia alguns políticos disseram publicamente que ” o Ministério Público anda em roda livre e é necessário reforçar a hierarquia no Ministério Público”, dito por outras palavras, é preciso que alguém controle as investigações que se andam a fazer.
A grande curiosidade neste processo passa por saber qual será o papel do PSD.
O Partido Social Democrata irá opor-se na Assembleia da República a um estatuto que visa “domesticar” o Ministério Público por dentro ou será que prevalecerá novamente o velho bloco central de interesses?
Para a semana irá começar formalmente o processo negocial entre o Governo e a Direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público para a revisão do estatuto. Esperamos que não se trate somente do cumprimento de uma mera formalidade legal.
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sabado.pt – 07/06/2017
António Ventinhas é presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público