OPINIÃO
BOLSA DE ESPECIALISTAS
14.06.2021 às 08h20

Os sistemas penais contemporâneos reconhecem ao arguido a possibilidade de, querendo, em função do comportamento que decida adotar após a prática do delito, participar ativamente na definição do seu próprio destino em termos sancionatórios.

A Proposta de Lei n.º 90/XIV apresentada na Assembleia da República pelo Governo apresenta um conjunto de alterações legislativas no âmbito do denominado “direito premial” tendo em vista a necessidade de garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme do mesmo em matéria de corrupção.

Esse esforço uniformizador fica aquém do desejável, porque deixa de fora um conjunto de crimes dispersos em legislação avulsa onde o legislador previu soluções dessa natureza.

Na lei da droga (DL 15/93) onde se estabelece que se o agente abandonar voluntariamente a sua atividade, afastar ou fizer diminuir por forma considerável o perigo produzido pela conduta, impedir ou se esforçar seriamente por impedir que o resultado que a lei quer evitar se verifique, ou auxiliar concretamente as autoridades na recolha de provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis, particularmente tratando-se de grupos, organizações ou associações, pode a pena ser-lhe especialmente atenuada ou ter lugar a dispensa de pena (art. 31).

Soluções desta natureza ainda se encontram na lei de combate ao terrorismo (Lei 52/2003 – art. 4/13) e quanto ao crime de tráfico e mediação de armas (art. 87/3, da Lei 5/2006).

Por outro lado, as soluções agora consagradas em matéria de corrupção poderiam ser aplicáveis a outros tipos de crime, como as burlas ou os crimes informáticos, onde igualmente se fazem sentir dificuldades investigatórias.

Esta é a oportunidade de delinear ao nível da legislação penal e processual penal um modelo único de valoração positiva da colaboração do arguido, aplicável a um catálogo de crimes que comungam das mesmas dificuldades investigatórias da criminalidade em matéria de corrupção, designadamente por corresponderem a uma criminalidade organizada, com estruturas complexas e fechadas, nascida num mundo global, sofisticada, que recorre aos métodos tecnológicos mais avançados, apresentando-se o seu combate como um desafio para os Estados de Direito Democrático.

Não faz sentido aprovar um regime limitado à matéria de corrupção, deixando de fora desse esforço harmonizador a demais legislação existente onde se consagram já soluções idênticas e toda uma criminalidade onde faria sentido aplicar soluções de “direito premial”.

Os sistemas penais contemporâneos reconhecem ao arguido a possibilidade de, querendo, em função do comportamento que decida adotar após a prática do delito, participar ativamente na definição do seu próprio destino em termos sancionatórios.

Entendemos que a concessão do benefício ao arguido que decida colaborar deverá pressupor sempre a assunção da responsabilidade do mesmo nos factos e não só a incriminação de terceiros e a entrega ao Estado da vantagem advinda do facto ilícito, para afastar a sua conotação negativa com “delação”, “bufos” ou “infiltrados”.

A opção pela dispensa ou pela atenuação deverá depender não só do momento e grau de colaboração do arguido ter sido essencial ou apenas relevante, mas também do grau de responsabilidade do mesmo no crime e na organização criminosa para que não seja favorecido o cabecilha de uma organização criminosa porque apercebendo-se da iminência de ser descoberto resolve fornecer às autoridades informações do crime cometido e que compromete terceiros, levando a que só estes sejam objeto de punição quando tinham tido um menor envolvimento no crime.

O arrependimento, quando integral e não condicional, só pode ser valorado de modo positivo por parte da lei e do julgador, pois é só através do arrependimento que o arguido se reencontra com os valores vigentes e impostos por uma dada ordem jurídica e, de certo modo, se inicia o processo de “reparação do dano”.

Cumpre agora à Assembleia da República ir além do Governo e aproveitar esta oportunidade para estruturar um modelo único de valoração positiva do comportamento do arguido que decida denunciar e colaborar com as autoridades, reunindo nos Códigos Penal e Processual Penal o respetivo regime e clarificando os pressupostos para a aplicação da dispensa ou atenuação especial da pena.

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