Hierarquia no Ministério Público, quem a exerce e como!

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Alguns, pré-anunciam o fim da autonomia interna do Ministério Público, ignorando que autonomia externa não existe sem a sua vertente interna (são indissociáveis) e sem esta o Ministério Público não é mais uma magistratura e transforma-se antes num corpo de funcionários administrativos que cumprem ordens superiores.
Assistimos nos últimos tempos, com base em pressupostos falsos, a uma tentativa de culpar a autonomia do Ministério Público por aquilo que alguns entendem que não está a funcionar bem nesta instituição e que responsabilizam, por sua vez, por um mau funcionamento generalizado da justiça.
A imagem que alguns pretendem fazer passar é instrumental em relação ao que pretendem alterar legislativamente. É preciso fazer da autonomia interna um bode expiatório, lançar a ideia (errada) de que ninguém se entende, de que os hierarcas não têm poderes (que já iremos ver não ser verdadeira) e o absurdo de que anda tudo em “roda livre”.
Não interessa olhar para a lei e compreender a especial natureza que assume a hierarquia no âmbito de uma magistratura e a forma equilibrada como se dá a sua conjugação com a autonomia (interna e externa).
Alguns, pré-anunciam o fim da autonomia interna do Ministério Público, ignorando que autonomia externa não existe sem a sua vertente interna (são indissociáveis) e sem esta o Ministério Público não é mais uma magistratura e transforma-se antes num corpo de funcionários administrativos que cumprem ordens superiores, sendo tal visão incompatível com a noção de autoridade judiciária e com a raiz constitucional do Ministério Público.
O Ministério Público é uma magistratura consolidada no nosso sistema judicial, elogiada ao nível europeu por diversos países e dada como uma referência e exemplo a seguir.
Os princípios fundamentais da atuação do Ministério Público têm raiz constitucional e, entre as suas competências, está o exercício da ação penal orientada pelo princípio da legalidade e a defesa da legalidade democrática. Autonomia e hierarquia são as duas características essenciais da organização do Ministério Público. Existe uma dupla vertente da autonomia, externa face aos demais órgãos do Estado e interna que diz respeito aos seus magistrados.
Como refere Rui Cardoso, “a inexistência de qualquer uma delas, não só em termos de direito, mas, principalmente, de efetividade prática, comprometeria definitivamente a existência do Ministério Público como magistratura e o desempenho da sua função constitucional” (existem poderes que o Ministério Público exerce no processo penal que apenas a magistraturas podem ser atribuídos).
E, como Portugal é um estado-membro da União Europeia e do Conselho da Europa, é necessário recordar as recomendações europeias que sustentam que a “independência do Ministério Público é um pré-requisito da independência do judiciário e para a existência de um Estado de Direito e, como tal, deve ser encorajada e garantida por lei, ao mais alto nível possível, de modo similar ao que se passa com os juízes. Os procuradores devem ser autónomos no seu processo de decisão e devem desempenhar as suas funções livres de qualquer pressão externa ou interferência, considerando os princípios de separação de poderes e prestação de contas” (Opinião n.º 18 do Conselho Consultivo de Procuradores Europeus, criado pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa).
Para alguns a hierarquia na magistratura do Ministério Público é a mesma coisa que a hierarquia no exército. Para estes, um manda e os restantes obedecem, independentemente da natureza da ordem ou sua legitimidade no quadro estatutário e legal do Ministério Público.
A hierarquia é de natureza funcional e temporária (um magistrado só é hierarca quando exerce um determinado cargo).
O artigo 100.º, n.º 2, do Estatuto do Ministério Público, dispõe que «a intervenção processual do superior hierárquico efetua-se nos termos do presente Estatuto e da lei de processo».
De acordo com o disposto no artigo 14.º do Estatuto do Ministério Público, no exercício das suas funções, detêm poderes de direção, hierarquia e, nos termos da lei, intervenção processual, na área penal (única que é objeto de apreciação mediática), os seguintes magistrados: o Procurador-Geral da República, o Vice-Procurador-Geral da República, o Procurador-Geral Regional, o diretor do departamento central de investigação e ação penal, o
magistrado do Ministério Público coordenador da Procuradoria da República da comarca, o diretor do departamento de investigação e ação penal regional e o diretor do departamento de investigação e ação penal (DIAP). Acresce que os procuradores da República que dirigem procuradorias e secções dos DIAP’s também detêm poderes de hierarquia processual.
Vejamos em primeiro lugar os poderes do Procurador-Geral da República (PGR). Um núcleo muito relevante da atuação do PGR passa pela emissão de diretivas, ordens e instruções a que deve obedecer a atuação dos magistrados, em especial aquelas destinadas a fazer cumprir as leis de orientação da política criminal.
As Diretivas desempenham um papel essencial na aplicação uniforme do Direito em todo o território nacional, promovendo a padronização de procedimentos e assegurando que todos os cidadãos sejam tratados igualmente perante a Lei. Em situações onde existam práticas ou visões jurídicas divergentes, especialmente aquelas que impactam significativamente os cidadãos, é crucial que o Ministério Público adote uma posição clara e consistente, defendendo-a nos processos. A uniformidade nas ações dos magistrados do Ministério Público em questões semelhantes aumenta a previsibilidade jurídica, evita decisões contraditórias e facilita a coordenação com os órgãos de polícia criminal.
O Procurador-Geral da República (PGR), ao emitir diretivas, tem o poder de orientar a tramitação de inúmeros inquéritos, abrangendo todos os magistrados do Ministério Público. As diretivas refletem a visão do PGR sobre a instituição e devem ser cumpridas pelos magistrados, exceto em casos de ilegalidade. Essas diretivas frequentemente contêm instruções detalhadas, que funcionam quase como roteiros de investigação, direcionadas aos magistrados do
Ministério Público envolvidos em investigações específicas (ex: no caso dos crimes de violência doméstica).
A Instrução contém “disposições gerais, de natureza vinculativa reforçada, sobre a atuação e organização relativas a questões e temáticas mais concretas e de menor importância do que aquelas que são alvo de conformação nas diretivas. Envolvem diretrizes de ação futura para casos que venham a produzir-se” (Diretiva n.º 5/2014, de 19 de novembro, da ProcuradoraGeral da República).
Por fim, a ordem “contém imposições vinculativas aos agentes de uma ação ou abstenção concreta, em razão e em função de um determinado objeto, de e para a organização e operacionalidade dos respetivos serviços” (mesma Diretiva acima citada).
Além disso, o PGR pode designar qualquer magistrado do Ministério Público para substituir ou auxiliar o magistrado originalmente responsável pelo processo (casos de complexidade processual ou repercussão social em que seja fundamental assegurar que os magistrados mais qualificados representem o Ministério Público em processos particularmente complexos ou socialmente relevantes, como os megaprocessos relacionados à criminalidade económico-financeira). O PGR não só detém o poder de organização geral da instituição, mas também pode selecionar magistrados para tarefas específicas. Por fim, o PGR possui a competência para intervir hierarquicamente nos inquéritos, conforme estabelecido pelo Código de Processo Penal.
Numa segunda camada hierárquica encontramos os quatro Procuradores-Gerais Regionais, que integram por inerência o Conselho Superior do Ministério Público (a “hierarquia no terreno”).
O Procurador-Geral Regional detém poderes de direção, hierarquia e intervenção processual. A Procuradoria-Geral Regional assegura a direção, coordenação e fiscalização da atividade do Ministério Público no âmbito da respetiva área territorial, podendo emitir ordens e instruções aos magistrados do Ministério Público que exercem funções na região e tem competência para intervir hierarquicamente nos inquéritos, nos termos previstos no CPP (nos
processos criminais pode nomear qualquer magistrado para coadjuvar ou substituir outro magistrado a quem o processo esteja distribuído, sempre que razões ponderosas de complexidade processual ou de repercussão social o justifiquem).
Numa terceira camada hierárquica encontramos os magistrados do Ministério Público coordenadores das 23 comarcas existentes.
O magistrado do Ministério Público coordenador de comarca dirige a procuradoria da República de comarca, que integra o DIAP da Comarca, as procuradorias dos juízos de competência especializada e as procuradorias dos juízos de competência genérica. A lei consagra de forma clara a possibilidade de intervenção hierárquica nos inquéritos e nos demais processos e dossiês do Ministério Público (a intervenção no inquérito tem de ser efetuada nos termos estritos do CPP).
De acordo com o disposto no artigo 83.º, n.º 2, alínea a), do EMP, compete ao dirigente da procuradoria assumir pessoalmente a representação do Ministério Público quando o justifique a gravidade da infração, a complexidade do processo ou a especial relevância do interesse a sustentar (certos processos sensíveis deverão ser assumidos pelo dirigente de procuradoria).
Citando aqui António Ventinhas (Revista do Ministério Público n.º 169) “Os hierarcas devem liderar, coordenar, resolver conflitos, fazer pontes com entidades externas, assegurar a organização dos serviços, bem como aliviar os magistrados que tramitam inquéritos e processos, assumindo algumas das funções mais burocráticas. Não é possível uma instituição subsistir se uma parte substancial dos seus membros ficar afeta meramente a funções de gestão,
administrativas e burocráticas e desprezar o core business da atividade. Há que ter bem presente que a função do Ministério Público não se destina a produzir relatórios ou mapas estatísticos, mas deve ter como fim último o serviço ao cidadão e a defesa da comunidade”.
Existe um risco claro (que não se concretiza necessariamente) de condicionamento das estruturas de investigação criminal (como bem salienta António Ventinhas) que resulta da conjugação de dois fatores: o Procurador-Geral da República ser um cargo de nomeação política e existir uma cadeia hierárquica em que há uma lógica de confiança pessoal, de cima para baixo.
Não posso deixar de recordar aqui que a escolha do Procurador-Geral da República condiciona o desempenho da instituição e a forma como esta irá atuar (o PGR não tem os poderes da Rainha de Inglaterra, como já foi comprovado pelo exercício de vários ProcuradoresGerais).
*
Uma nota de pesar pelo óbito da Emérita Procuradora-Geral da República Dr.ª Joana Marques Vidal, que nos deixou demasiado cedo, tendo sido uma grande defensora da autonomia, em todas as suas vertentes, do Ministério Público e alguém que deixa a sua marca não apenas no Ministério Público e na justiça, mas também na própria sociedade.