Informação, desinformação, segredo e fugas

25/06/2024

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

É muito raro que existam fugas de informação em processos sujeitos a segredo de justiça antes da realização de diligências de busca ou interrogatórios judiciais.

A existência de uma fuga de informação num processo mediático, em que ocorreram escutas telefónicas, tem sido objeto de comentário recorrente nos meios de comunicação social e política.

Esses comentários fazem incidir críticas recorrentes sobre a atuação do Ministério Público, alguns comparando coisas incomparáveis e fazendo juízos de valor inadmissíveis sobre o Ministério Público assentes em presunções carregadas de preconceitos sobre o funcionamento da justiça.

Convêm, desde já, esclarecer que não se trata de um fenómeno generalizado, ao contrário do que muitas vezes se quer fazer passar.

De acordo com uma auditoria em tempos realizada, pelo atual Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça João Rato, no âmbito da Procuradoria-Geral da República, os casos conhecidos de violação do segredo de justiça representam cerca de um por cento dos processos sujeitos a segredo de justiça (recorda-se que a regra atualmente é a publicidade do processo e o segredo de justiça a exceção).

Diga-se, contudo, que ainda que tal acontecesse em apenas 0,1% dos processos seria sempre negativo e algo a combater, mas não se pode falar de algo generalizado quando ocorre num universo tão pequeno de processos.

É muito raro que existam fugas de informação em processos sujeitos a segredo de justiça antes da realização de diligências de busca ou interrogatórios judiciais.

A auditoria concluiu que os “momentos críticos” dos processos sujeitos ao segredo de justiça e em que há fuga de informação são as buscas (15 casos), interrogatório judicial (nove), comunicados de imprensa (seis) e escutas (cinco).

Isto significa que as fugas de informação ocorrem habitualmente quando o processo deixa de estar exclusivamente na disponibilidade dos magistrados do Ministério Público, quando deixa de estar sujeito a segredo interno e vigora apenas o segredo externo.

No entanto, para alguns o Ministério Público é sempre o alvo de sobressaltos, independentemente da existência de qualquer tipo de responsabilidade sobre qualquer fuga de informação. Outros, mais cautelosos, mas igualmente parciais, querem fazer incidir sobre os magistrados do Ministério Público uma espécie de responsabilidade objetiva nesta matéria (não interessa se têm ou não responsabilidade, mas existindo fuga a culpa é sempre destes).

A questão que se impõe colocar a estes comentadores que muitas vezes se mostram (legitimamente) preocupados com o princípio da presunção de inocência é a seguinte: Será que apenas os suspeitos/arguidos, investigados em processos-crime, se presumem inocentes e os magistrados do Ministério Público, constitucionalmente defensores da legalidade, se presumem culpados de cada vez que a comunicação social notícia processos em segredo de justiça.

Mais uma vez (again and again), para alguns comentadores, parece existir uma prova clara e irrefutável que foi o Ministério Público quem passou para o exterior do processo informações em segredo de justiça (não lhes interessa o resultado da investigação já anunciada à violação de segredo de justiça).

Ora, como antes referi, a grande contradição é que aqueles que se mostram mais “chocados” com uma possível violação dos direitos de terceiros e violação de segredo de justiça, pela comunicação social, são os mesmos que não se coíbem em imputar, sem qualquer indício mínimo de prova, aos magistrados do Ministério Público responsáveis por uma investigação, essa mesma fuga de informação.

Então aqui já não são necessárias provas e já todas as presunções são admissíveis? O critério muda e o consenso é generalizado.

Dá-se, igualmente, por adquirido que existe uma malévola estratégia destinada a atacar a classe política (para alguns no seu todo e para outros alguma em particular).

Mais uma vez (again and again) confesso algum choque com diversas declarações feitas por comentadores e políticos, mesmo alguns que sempre reputei como sérios e isentos no seu comentário.

Tal como lamento ver diversos comentadores alinhados nessa falácia e a darem por adquirido que a responsabilidade é do Ministério Público.

Ora, quem pode introduzir alterações na lei que permitam tornar eficazes as investigações por violações de segredo de justiça?

A resposta é só uma.

O poder político.

E, muitos dos que agora criticam o Ministério Público nada fizeram (no seu tempo) para acolher as sugestões apresentadas para permitir uma investigação eficaz das violações de segredo de justiça.

É muito simples, se queremos que seja investigado a sério esse crime então é necessário permitir a realização, na sua investigação, de interceções telefónicas.

Mas, não são os magistrados que legislam, apenas aplicam a lei.

O que ganhariam os magistrados do Ministério Público em divulgarem informação dos seus processos na comunicação social?

Afinal o segredo de justiça tem como finalidade principal a proteção da própria investigação.

Os magistrados, ao contrário do que alguns pensam (ou afirmam), não vivem num universo feito de conspirações para derrubar ou deturpar membros da classe política deste ou daquele partido ou desta ou daquela fação.

O Ministério Público é uma magistratura que se guia pela legalidade e objetividade e visa prosseguir, nas suas diversas funções, o interesse público.

Não é o Ministério Público que faz as notícias e que seleciona factos para reportagens.

Mas, dito isto, é legítimo que se coloque e debata a questão do acesso aos processos por terceiros.

O acesso a processos em investigação pode ocorrer interna ou externamente (até em casos de quebra de segurança).

Quem tem acesso interno aos processos (não acessíveis ao público em geral) para deles dar conhecimento a terceiros?

Ora, quem é que contacta com os processos: magistrados judiciais com funções de instrução criminal, magistrados do Ministério Público titulares dos inquéritos, oficiais de justiça que trabalham nos processos, polícias que os investigam, cidadãos ou jornalistas com o estatuto de assistentes no processo (quando existem) e advogados (quando intervenientes).

Não podemos dar por adquirido quem transmitiu alguma informação à comunicação social ou de que modo esta acedeu a determinada informação.

Muito ouvi, mais uma vez, invocar a Democracia, o Estado de Direito e os direitos de quem é visado em investigações.

Contudo, será que imputar aos magistrados do Ministério Público uma atuação violadora dos seus deveres funcionais, sem qualquer prova, não atinge os valores desse mesmo Estado de Direito?

Essas pessoas não devem, igualmente, beneficiar de uma presunção de que agiram de acordo com as suas responsabilidades e deveres funcionais, até que se prove o contrário. Quanto a eles já não existe qualquer problema em assumir uma presunção de culpa.

Os verdadeiros defensores de uma justiça independente não procuram nas suas, “supostas” ou “verdadeiras”, omissões ou falhas, um pretexto para a politizar e colocar em causa a independência de magistrados judiciais e do Ministério Público.

Já se vai “manifestando” a instrumentalização que está em marcha para servir como pano de fundo para forçar alterações legislativas condicionadoras da atuação da justiça.

Os tempos fazem recordar outros passados, que levaram a questionar a justiça e produziram alterações legislativas precipitadas e muitas vezes inadequadas.

Em outros países (os exemplos da Polónia, Israel e Turquia deviam fazer-nos refletir) já se aprendeu que não é o controlo do político sobre o judiciário que traz a transparência da Justiça.

Para a proteção dos cidadãos é indispensável uma justiça independente e que esteja em condições de exercer o seu papel sem constrangimentos externos e limitadores.

O Estado de Direito Democrático não existe sem independência do sistema de justiça e sem a autonomia do Ministério Público não existe essa independência.

É bom que os nossos comentadores e políticos olhem para as recomendações do Conselho da Europa, decisões nesta matéria dos órgãos da União Europeia e Tribunais Europeus que vinculam Portugal (seguramente não queremos ser a nova Polónia com os fundos europeus de coesão e de recuperação congelados por não dar garantias de independência do sistema de justiça; O partido no poder, Lei e Justiça, que governou a Polónia durante os últimos oito anos, implementou uma série de leis que deram aos poderes executivo e legislativo maior controlo sobre o poder judicial e foi submetido a um procedimento por infração ligado a violações do Estado de Direito).

 

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