Inutilidades que persistem e já deveriam ter sido reavaliadas

07/01/2025

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

Numa era em que se debate cada vez mais a utilização da inteligência artificial na justiça, é pertinente questionar a eficácia e a sensatez do atual sistema de fiscalização diária da distribuição de processos judiciais em Portugal.

Entre algumas inutilidades que persistem no nosso sistema de justiça uma reúne um claro consenso negativo, sem que tenha sido ainda reavaliada e alterada por quem tem a responsabilidade política para tal.

E do que estou a falar?

Da fiscalização da distribuição eletrónica dos processos judiciais.

A Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, introduziu mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais, alterando o Código de Processo Civil.

Esta Lei veio, através da Portaria 86/2023, de 27 de março, a ser regulamentada.

De acordo com o preâmbulo da portaria 86/2023, de 27 de março “passa a ser necessário reunir diariamente, em todos os locais onde ocorre distribuição, um conjunto de operadores da justiça para assistir ao ato da distribuição, que até aqui dispensava, na maioria dos casos, qualquer intervenção humana, e elaborar uma ata à qual é anexad o o resultado da distribuição”.

É importante proceder a revisão urgente desta portaria e do sistema de fiscalização da distribuição, por meios eletrónicos, nos tribunais judiciais e nos tribunais administrativos e fiscais.

Estava previsto um estudo de monitorização e avaliação da aplicação prática das alterações legais introduzidas, que iria avaliar o impacto no funcionamento quotidiano e no desempenho dos diferentes tribunais e identificar constrangimentos, oportunidades de melhoria ou soluções alternativas.

A revisão da implementação da portaria deveria ter ocorrido aproximadamente em março de 2024, 10 meses após a entrada em vigor inicial (4 meses para implementação + 6 meses para avaliação) da portaria.

Dado o tempo decorrido presumimos que essa avaliação esteja feita e é importante que o Ministério da Justiça a divulgue.

As regras definidas na portaria, com a presença física dos magistrados no ato de distribuição, não trazem qualquer benefício em termos de transparência e têm provocado perturbação na atividade dos tribunais.

Este procedimento, que implica a interrupção diária das atividades do tribunal, incluindo as urgentes, para que magistrados e funcionários “presenciem” a distribuição eletrónica e assinem uma ata, levanta sérias dúvidas quanto à sua pertinência e eficiência e atrasa o andamento de questões verdadeiramente prioritárias e importantes.

Numa era em que se debate cada vez mais a utilização da inteligência artificial na justiça, é pertinente questionar a eficácia e a sensatez do atual sistema de fiscalização diária da distribuição de processos judiciais em Portugal. Este sistema, que envolve a presença de um magistrado judicial, um magistrado do Ministério Público e um oficial de justiça, que se reúnem diariamente para assinar uma ata confirmando a conformidade da distribuição com as regras estabelecidas, suscita várias interrogações.

Em primeiro lugar, é importante considerar que a distribuição eletrónica é realizada por um programa informático, utilizando um algoritmo específico e seguindo regras predeterminadas. Neste contexto, é legítimo questionar se estes profissionais possuem, de facto, o conhecimento técnico necessário para certificar o adequado funcionamento do sistema informático na distribuição dos processos entre os juízes de determinado tribunal.

Além disso, é crucial refletir sobre a eficácia deste método na consecução do objetivo legal de um escrutínio efetivo do resultado das operações de distribuição. Sem um domínio profundo do funcionamento do sistema informático, como é possível certificar, com segurança, a legalidade dessa distribuição?

Uma alternativa potencialmente mais eficaz poderia ser a realização de auditorias regulares ao funcionamento do sistema informático que regula a distribuição. Estas auditorias, conduzidas por peritos na área da informática e sistemas, poderiam oferecer uma análise mais técnica e aprofundada do processo de distribuição. Adicionalmente, a supervisão destas auditorias pelos magistrados, através dos respetivos Conselhos Superiores, poderia garantir uma fiscalização mais robusta e tecnicamente fundamentada.

Esta abordagem não só poderia proporcionar um escrutínio mais efetivo e tecnicamente informado do processo de distribuição, como também libertaria recursos humanos valiosos para outras tarefas cruciais no sistema judicial. Além disso, alinharia melhor o processo de fiscalização com as tendências atuais de digitalização e uso de tecnologias avançadas no sistema judiciário.

Em suma, o atual sistema impõe um ónus significativo sobre o funcionamento diário dos tribunais, potencialmente comprometendo a eficiência judicial, sem necessariamente oferecer garantias substanciais de maior transparência ou equidade na distribuição de processos. Num contexto de crescente digitalização e uso de inteligência artificial na justiça, é fundamental repensar os métodos de fiscalização para garantir que sejam eficazes e adequados às realidades tecnológicas atuais.

É chegado o momento de pôr termo a um procedimento que se assemelha a um mero exercício de “faz de conta”, no qual os magistrados são chamados a certificar um processo realizado por um sistema informático e um algoritmo que, na realidade, não dominam.

Neste contexto, urge que o Ministério da Justiça divulgue os resultados da reavaliação da Portaria n.º 86/2023, de 27 de março, bem como os eventuais constrangimentos identificados durante o período de implementação. Esta avaliação, prevista para ser concluída por uma entidade independente em março de 2024, deveria fornecer insights valiosos sobre a eficácia e praticabilidade do atual sistema de distribuição eletrónica de processos.

Com base nos resultados dessa reavaliação, cujas conclusões são fáceis de antecipar, é imperativo que o Ministério da Justiça proceda à revisão da portaria, eliminando este tipo de fiscalização da distribuição que, na prática, pouco ou nada fiscaliza e só causa entropias no funcionamento dos tribunais.

Share This