Investigar ou não investigar: eis a não questão!

05/08/2024

Revista Visão
Rosário Barbosa
Procuradora da República e Presidente da Direcção Regional do Porto do SMMP

O Ministério Público tem de promover a ação penal, sem margem para discricionariedade, arbitrariedade ou juízos de conveniência

A Constituição da República Portuguesa estatui que cabe ao Ministério Público exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade. Quer isto dizer que a promoção processual dos crimes é uma tarefa do Estado e deverá realizar-se oficiosamente, independentemente da vontade dos particulares. Por este motivo, o Código de Processo Penal estabelece que a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito. É o chamado princípio da oficialidade.

Contudo, este princípio não é absoluto, sofrendo as limitações decorrentes de pressupostos de procedibilidade de determinados crimes: os chamados crimes semi-públicos e particulares.

Esclarecendo: imagine que está numa esplanada e, sem se aperceber, lhe furtam a carteira. Cabe-lhe a si decidir se apresenta queixa ou não. Se optar por não apresentar, o Ministério Público, mesmo que tome conhecimento do facto, não poderá instaurar procedimento criminal. Nestes crimes, os semi-públicos, está na disponibilidade do titular do bem jurídico a existência ou não de procedimento criminal.

Semelhante, mas com um plus, é o caso dos crimes particulares. Os mais comuns são os crimes de injúria ou difamação. Nestes, o Ministério Público só poderá iniciar o procedimento criminal caso o titular do bem jurídico, além da referida queixa, se constitua assistente no processo, ou seja, caso pague uma taxa e constitua um mandatário (ou solicite apoio judiciário).

Nos restantes crimes, os públicos, o Ministério Público tem de instaurar inquérito sempre que adquire a notícia do crime, mesmo contra a vontade do ofendido. É que o sucede, por exemplo, nos crimes de violência doméstica, roubo, etc.

Em regra, o conhecimento dos factos chega ao Ministério Público através dos órgãos de polícia criminal de proximidade (PSP e GNR) e iniciam-se de imediato todas as diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e as suas responsabilidades e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.

Então se é o inquérito que vai investigar a existência de crime, o que é afinal a notícia de um crime (público) que determina a abertura de inquérito?

Como refere João Conde Correia, a notitia criminis não obedece a quaisquer formalidades legais, consistindo na mera informação de que foi cometido um determinado crime, por uma ou por várias pessoas identificadas (notícia específica) ou, então, por uma ou por várias pessoas não identificadas (notícia genérica – como o nosso exemplo supra). Não é, sequer, necessário que o crime seja imputado a pessoa certa e determinada. Ou seja, para que exista uma verdadeira notícia do crime não é necessário que os factos revelados estejam totalmente esclarecidos e demonstrados ou que o seu autor ou autores sejam conhecidos, basta uma aparência de que o crime foi cometido (fumus commissi delicti), uma suspeita.

Concretizando, o raciocínio que o Ministério Público terá de fazer perante uma panóplia de factos que lhe seja apresentada é: os factos denunciados / conhecidos, abstratamente considerados, poderão integrar a prática de um facto, ilícito, típico e punível (crime)?

Se a resposta for afirmativa, o Ministério Público tem de promover a ação penal, sem margem para discricionariedade, arbitrariedade ou juízos de conveniência.

Ao contrário de outros países (por exemplo, Estados Unidos da América, em que vigora o princípio da oportunidade), o Ministério Público dirige o inquérito assistido pelos órgãos de polícia criminal que actuam sob sua directa orientação e na sua dependência funcional. Não pode decidir se investiga ou não mediante os elementos que lhe são trazidos pelas “polícias” ou se deixa de perseguir criminalmente alguém, por qualquer razão política, ideológica ou outra.

Aliás, a lei penal portuguesa até comina com a prática de crime, a falta de promoção da acção penal.

E se a denúncia for anónima?

Como vimos o Ministério Público pode adquirir conhecimento de factos (notícia do crime) por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia. Contudo, o legislador exige cautelas acrescidas no caso de o denunciador não se identificar. Assim, a denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito se: dela se retirarem indícios da prática de crime ou se constituir crime.

Cabe então aos magistrados do Ministério Público detentores da ação penal ajuizar da sua credibilidade que pode resultar do seu conteúdo ou de outras circunstâncias e, assim, verificar se poderá haver indícios da prática de crime ou não.

Exemplificando, denúncias com o dizeres: “eles são uns corruptos, investiguem!”, sem qualquer outro elemento concretizar, não deverá dar origem à abertura de inquérito, pois que não há qualquer factualidade suscetível de ser investigada! Ou seja, deverão ser comunicados factos concretos de onde se possam extrair indícios da prática de crime. Nas situações de fronteira deverá, em nosso entender, proceder-se a diligências para confirmar a existência de crime.

Aqui chegados, em jeito de conclusão, não instaurar inquérito apenas é opção se não houver as condições de procedibilidade do procedimento criminal (queixa / constituição de assistente) ou se os factos denunciados, sejam tão vagos e imprecisos que não permitam ser objecto de qualquer investigação.

 

 

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