Justiça: Perceção e Realidade. Estudos, sondagens, inquéritos e afins

06/08/2024

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

É importante debruçarmo-nos sobre o que valem estes estudos de opinião, sondagens ou inquéritos, que realidades refletem e, igualmente, o que nos diz o seu timing de divulgação.  

Ultimamente, por força do crescente mediatismo da justiça e de alguns processos em especial, quase todas as semanas, surgem novos estudos de opinião, sondagens ou inquéritos que em geral – com maior ou menor credibilidade e com maior ou menor sentido de oportunidade – pretendem traçar um retrato sobre a imagem da justiça e do Ministério Público.  

É importante debruçarmo-nos sobre o que valem estes estudos de opinião, sondagens ou inquéritos, que realidades refletem e, igualmente, o que nos diz o seu timing de divulgação.  

Mais do que captar a realidade procuram medir as perceções existentes sobre a justiça em cada momento temporal. Mesmo quando se reportam a outras realidades e ao funcionamento de outras instituições do Estado de Direito, o enfoque é invariavelmente dado à justiça e, em especial, ao Ministério Público. 

E, obviamente, essas perceções vão ser o reflexo do momento em que são captadas. Temos estudos, inquéritos e sondagens para todos os gostos. 

Vejamos alguns: Uma sondagem realizada pelo Jornal de Notícias apontava para um acentuado e preocupante saldo negativo na confiança que os cidadãos têm nas instituições democráticas (diferença entre as respostas positivas e negativas) de 32% quanto à Assembleia da República, 30% quanto ao Governo, 29% quanto aos juízes e 18% quanto ao Ministério Público (aqui o Ministério Público acabava por ser o “menos mau”). 

A 10 de julho de 2024, em notícia publicada no Jornal de Notícias, com o título “Confiança dos portugueses na Justiça é mais elevada que no Governo”, era revelado o resultado de um inquérito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), com dados de 2023, que afirmava que 50% dos portugueses diziam confiar mais nos tribunais e no sistema de justiça. 

Por sua vez, a percentagem da população com confiança elevada ou moderadamente elevada no Governo e na Assembleia da República ficava-se pelos 30%. 

Um estudo realizado pelo Instituto Universitário de Lisboa (I.S.C.T.E. cuja Reitora é Maria de Lurdes Rodrigues, um dos membros mais ativos do denominado grupo dos 50 plus), largamente divulgado pela comunicação social e muito comentado por alguns, apontava para a circunstância de 74% dos inquiridos avaliarem o sistema de justiça como funcionando atualmente «mal» ou «muito mal» (59% dos inquiridos apontavam o mesmo para o funcionamento do Parlamento e 63% para o funcionamento do Governo).

Sendo juízes, procuradores e governo considerados pelos inquiridos como os principais responsáveis. A avaliação mais negativa sobre o funcionamento do sistema de justiça tem a ver com a sua lentidão (média de 2,5% numa escala de 10). Um outro dado curioso apresentado, que contraria a visão de alguns, diz-nos que 72% dos inquiridos acreditam que as pessoas com cargos políticos são favorecidas pelo sistema de justiça.  

Por outro lado, 66% dos inquiridos acham que os magistrados cedem, com muita ou alguma frequência, a pressões do Governo, 52% a partidos da oposição e 63% diz que são pressionados pela comunicação social (o que contraria as conclusões do relatório do Estado de Direito da Comissão Europeia relativo a 2024, como já iremos ver).  

Um ponto, curiosamente (ou não), pouco salientado neste relatório é a circunstância de existir uma maioria que considera que em Portugal se investigam casos de suspeitas de corrupção e tráfico de influências com profissionalismo, respeitando os direitos de quem é investigado, de forma imparcial e contribuindo para combater a corrupção e o tráfico de influências. 

Um outro dado estatístico pouco realçado relativamente a este estudo é o de 82% das pessoas que deram o seu contributo afirmarem que a sua perceção não resulta de um contacto direto com o sistema de justiça, o que demonstra claramente a influência da mensagem mediática nessa mesma percepção. 

As notícias da comunicação social são a fonte mais mencionada e principal meio de informação e as experiências pessoais com o sistema de justiça apenas influenciaram a percepção de 24% (apenas 6% apontam livros ou estudos como fonte de informação). 

Curiosamente, pouco tempo depois da divulgação deste estudo, uma sondagem difundida apontava para a circunstância de ter subido 6% a opinião positiva dos cidadãos sobre a atuação do Ministério Público. 

O recente relatório da Comissão Europeia sobre o Estado de Direito em Portugal, por sua vez, aponta para resultados muito diferentes no que respeita ao grau de percepção da independência judicial. 

Em Portugal, em 2024, 53% da população em geral e 44% das empresas consideram que o nível de independência dos tribunais e dos juízes é «bastante bom» ou «muito bom», tendo aumentado em relação ao ano anterior. 

A perceção é a capacidade de captar, processar e dar sentido de forma ativa à informação que alcança os nossos sentidos. É o processo cognitivo que nos permite interpretar o nosso meio-envolvente através dos estímulos que captamos através dos órgãos sensoriais.  

A percepção dos cidadãos sobre determinada realidade ou instituição pode ser influenciada por uma variedade de fatores. A liderança política, figuras de autoridade e especialistas têm o potencial de influenciar a perceção pública por meio de suas declarações, opiniões e ações.  

A disseminação de desinformação, notícias falsas e campanhas de manipulação podem distorcer a perceção dos cidadãos sobre a realidade. Isso pode criar confusão, alimentar teorias da conspiração e minar a confiança nas fontes de informação confiáveis. 

Os jornalistas e aqueles que fazem comentário no espaço público condicionam as perceções. As suas opiniões são depois amplificadas nas redes sociais, nos blogues, nos podcasts e transformam-se elas próprias em notícia, chegando ao ponto de termos comentadores a comentarem o próprio comentário de terceiros. 

Acontece que estes comentários estão, por vezes, comprometidos com determinados interesses, nem sempre transparentes. O mundo da política e do comentário mediático misturam-se e entrecruzam-se como nunca antes. 

A forma como se apresentam determinados eventos influencia significativamente a perceção pública. Isso inclui o tipo de narrativa utilizada, o enfoque dado a determinados aspetos, a seleção de fontes e a frequência da cobertura. 

Basta ver os noticiários, ouvir os programas de informação, ler os jornais/revistas, escutar os comentadores políticos, os especialistas em marketing político e acompanhar as redes sociais para constatar que o espaço público mediático se encontra profundamente contaminado por um conjunto de ideias muitas vezes erradas sobre a justiça e, em particular, sobre o Ministério Público. 

Essa contaminação é, por vezes, intencional, obedecendo a lógicas de funcionamento político-partidário e de marketing e, em outras ocasiões, apenas ignorante e desconhecedora da realidade.  

A disseminação deliberada de informações falsas pode minar a compreensão coletiva da realidade. Isso cria uma base frágil para a tomada de decisões informadas, prejudicando a capacidade da sociedade de abordar questões críticas de maneira fundamentada. 

É um fenómeno mundial e ao qual Portugal não está imune (basta pensar no que se passa nos Estados Unidos da América): poderes externos ou grupos com interesses específicos manipulam o espaço público para controlar narrativas e influenciar a opinião pública. Isso compromete a autonomia das pessoas ao moldar as suas perceções de eventos e questões. 

Quando o espaço público é contaminado, com informações imprecisas ou enviesadas, a confiança nas instituições é afetada, podendo inclusivamente enfraquecer a capacidade das instituições de funcionar eficazmente, em especial quando estas apresentam um défice comunicacional.  

A justiça em Portugal, por força de manifestos que se transformaram em grupos de pressão, estudos e campanhas de «de»pressão mediática (com tempo de antena infinito), está na boca de todo e qualquer comentador, seja ele economista, gestor, engenheiro, físico, químico, professor, médico, escritor ou músico, que aparenta saber mais do estado da justiça do que aqueles que dela fazem a sua profissão há anos e anos e lhe conhecem as fraquezas, forças, debilidades e insuficiências. 

Alguns têm vindo a alertar, nos últimos anos, para o que iria acontecer com a falta de investimento sério na justiça, como tem sido internacionalmente reconhecido. 

Outros, até com responsabilidades políticas recentes, despertaram recentemente para o que chamam de “crise da justiça”, pouco se preocupando com as suas reais causas e em apresentar soluções viáveis e admissíveis num Estado de Direito. 

Uma pequena nota, todos na Europa, desde a Polónia à Hungria, sabem bem o que significa introduzir “mecanismos de controlo externo” ou “escrutínio externo” à atividade do Ministério Público e dos Tribunais (para além daqueles que já existem e que são necessários), falem com os magistrados destes países e leiam o último relatório sobre o Estado de Direito na Europa elaborado pela Comissão Europeia. 

Recorrendo às palavras do Procurador-Geral Adjunto José Branco “Há sempre 50% dos intervenientes no processo que não vão gostar de nós e às vezes fazemos o pleno. 

O Ministério Público não pode ser um jogo de popularidade, porque corria-se o risco de termos algumas derivas de alguém que para ser mais popular torcesse as regras”.   

Sondagens, inquéritos e estudos valem o que valem. Lidam com as perceções e a dai a inconstância e variabilidade dos seus resultados em função do momento temporal da sua realização e impacto mediático dos casos debatidos na comunicação social, sendo certo que esta (por regra) pouco se importa com o cão que mordeu o homem mas sim com o homem que mordeu o cão (as regras da comunicação social, a concorrência e alguma pressão de certos “influentes” da comunicação social a isso obrigam). 

Em conclusão, olhemos para estes estudos, inquéritos e sondagens por aquilo que de facto são, sem desvalorizar nem sobrevalorizar, com a exata noção da forma como se constroem as perceções e se valorizam ou desvalorizam certos resultados (em função do propósito visado).  

Vejamos, com os olhos de quem quer mesmo ver, a realidade e os problemas de insuficiência de recursos materiais, tecnológicos e humanos (olhemos para o que se passa com os oficiais de justiça e com a desproteção na doença a que estão sujeitos os advogados), com uma abordagem séria que identifique os reais problemas e procure soluções. É isso que realmente interessa aos cidadãos e a quem trabalha no sistema de justiça.

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