Mãos que amam, mãos que matam!
Revista Visão
Ana Rita Granado
Procuradora da República e Presidente da Direcção Regional de Évora do SMMP
Mesmo nos casos em que já existe histórico de violência doméstica, situações há em que o agressor já não reside com a vítima e pode mesmo encontrar-se proibido de a contatar por qualquer meio, através de medida de coação imposta pelo tribunal, o que não obsta a que num ato inusitado e imprevisível, a aborde e mate, sem que haja qualquer possibilidade de antever os seus atos e o impedir
O fenómeno criminal do homicídio consumado em contexto de violência doméstica é uma realidade grave e complexa que afeta muitas sociedades em todo o mundo e, para a qual todos devemos estar sensibilizados e alertados.
No ordenamento jurídico português não se encontra expressamente previsto este tipo legal de crime, o qual ocorre quando uma pessoa é assassinada num contexto onde há relações familiares ou íntimas conforme os critérios constantes do n.º 1, do artigo 152.º, do Código Penal, ou seja, quando é cometido contra cônjuge ou ex-cônjuge; pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum em 1.º grau; pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite ou menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas supra- referidas, com quem tenha mantido ou mantenha uma relação amorosa, ainda que com ele não coabite.
Quando o mesmo é cometido, o agente incorre na prática de um crime de homicídio qualificado, previsto nos termos dos art. 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, do Código Penal e punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos (pena máxima de prisão em Portugal).
Na maioria dos casos, o referido crime é precedido por um histórico de violência emocional, verbal ou física, que se traduz no preenchimento do crime de violência doméstica. Na verdade, o homicídio em contexto de violência doméstica é o resultado de um padrão de abuso que pode ser cíclico, incluindo fases de tensão, explosão e “lua de mel”, ciclo esse que pode dificultar a saída da vítima da relação abusiva.
Não raras vezes o crime de homicídio consumado em contexto de violência doméstica ocorre sem que junto das autoridades competentes haja notícia prévia da existência de um contexto de violência doméstica naquele agregado familiar, porque por um lado as vítimas não o relatam ou porque efetivamente se tratou de um ato único que culminou no mais abominável ato praticado por um ser humano.
Os agressores podem ter diversas características e podem ser de qualquer género. A possessividade, ciúmes extremos, controlo e a necessidade de poder são comportamentos comuns entre agressores, e as vítimas de violência doméstica podem sofrer consequências físicas e emocionais significativas, que vão desde lesões físicas permanentes ou não, problemas de saúde mental, e nos casos mais graves, a morte.
Conforme já referido em artigo de opinião publicado nesta mesma sede, no ano de 2023, de acordo com o relatório de “Homicídios em contexto de violência doméstica- 2023- análise dos indicadores”, elaborado pelo Gabinete da Família, da Criança, do Jovem e do Idoso e contra a Violência Doméstica (GFCJIVD- PGR), a violência associada foi responsável pela verificação de 30 óbitos, 17 mulheres, 3 homens e 2 crianças (meninas).
Há cerca de 2 semanas, alguns tabloides nacionais fizeram manchete com a notícia da morte de mais uma mulher, vítima de violência doméstica. E, sempre que ocorre um homicídio consumado em contexto de violência doméstica é inevitável e profícuo as autoridades questionarem se houve alguma falha no processo de proteção da vítima, tentar conhecer a realidade dos fatos e extrair ensinamentos que visem a melhoria da atuação funcional futura.
Desde 2019, a Procuradoria Geral da República numa parceria informal com a Unidade de Informação Criminal (UIC) da Polícia Judiciária (PJ) iniciou atividade de acompanhamento e monitorização de todos os casos que podem integrar o conceito de “homicídio em contexto de violência doméstica” (HCVD), visando aqueles mesmos objetivos.
Não obstante os esforços envidados por todas as entidades, designadamente Ministério Público, órgãos de polícia criminal, serviços de saúde, educação, assistência social e comunitários e das medidas de prevenção e repressão adotadas, as quais abordaremos em artigo futuro, o crime de homicídio consumado em contexto de violência doméstica é complexo e multifacetado, e diversos fatores podem levar um indivíduo a cometer esse ato hediondo, designadamente fatores sociais e económicos, psicológicos, histórico de violência no lar, influência familiar, substâncias químicas, conflitos pessoais, momentos de crise, ciúmes, entre outros, e, há um fator que ainda não conseguimos antever e controlar: a imprevisibilidade do comportamento do ser humano, tema complexo que abrange diversas áreas, incluindo psicologia, sociologia, neurociência e filosofia.
Mesmo nos casos em que já existe histórico de violência doméstica, situações há em que o agressor já não reside com a vítima e pode mesmo encontrar-se proibido de a contatar por qualquer meio, através de medida de coação imposta pelo tribunal, o que não obsta a que num ato inusitado e imprevisível, a aborde e mate, sem que haja qualquer possibilidade de antever os seus atos e o impedir.
Cada caso é único, e frequentemente, múltiplos fatores interagem de maneira complexa, o que faz com que a previsão do comportamento humano seja um desafio. Além disso, a teoria do caos e o princípio da incerteza mostram que sistemas complexos, como o comportamento humano, podem ser sensíveis a pequenas mudanças, dificultando ainda mais a previsão.
É, pois, vital que a sociedade como um todo se mobilize para reconhecer, combater e prevenir a violência doméstica, criando ambientes seguros e de apoio para todas as vítimas, por forma a evitar o homicídio consumado em contexto de violência doméstica.