
SÁBADO, 13-09-2022 por Paulo Lona, Secretário-Geral do SMMP
O que o sistema de justiça necessita mesmo é de ser dotado dos indispensáveis meios materiais, equipamentos e redes informáticas e dos recursos humanos para o seu funcionamento.
Há ideias que persistem para além da razão, bom-senso e normalidade, mesmo que sejam apenas “mais do mesmo”, isto é, ideias que outros, anteriormente, mesmo com fundamentos diversos, tentaram impor e que não conseguiram, felizmente para o estado de direito (com a sua importantíssima dimensão da separação de poderes), para a independência das magistraturas perante o poder político e para o funcionamento das instituições democráticas.
Não se nega que o sistema de justiça precisa de alterações, nomeadamente legislativas, que possam potenciar o seu funcionamento.
Mas, essas alterações não dizem respeito à composição dos conselhos superiores nem às relações “hierárquicas” nas magistraturas.
O que o sistema de justiça necessita mesmo é de ser dotado dos indispensáveis meios materiais, equipamentos e redes informáticas e dos recursos humanos para o seu funcionamento (magistrados e oficiais de justiça que permitam pelo menos preencher os próprios quadros legais) e não de mexidas/alterações na composição e funções dos conselhos superiores das magistraturas ou de regulações hierárquicas.
Confesso que com grande espanto li num artigo recentemente escrito por um advogado, a propósito da reabertura dos tribunais, que o sistema judicial não é eficaz por “falta de regulação das relações hierárquicas tanto na magistratura judicial como do Ministério Público” e que “enquanto não se corrigir a composição e funções dos conselhos superiores que exercem a ação disciplinar sobre os próprios magistrados, e que têm competência para nomear, transferir e promover juízes e procuradores, tudo ficará na mesma, politizado e fora de uma justiça como serviço público transparente e eficaz”.
Ora, desde logo muito se estranha que se venha falar em regular relações hierárquicas na magistratura judicial, que se caracteriza pela independência dos juízes e precisamente pela ausência de relações de hierarquia. A menos que o autor pretenda acabar com um dos pilares do Estado de Direito Democrático prosseguindo caminhos seguidos em países como a Turquia, Polónia e Hungria.
No que respeita ao Ministério Público igual estranheza não pode deixar de causar tal afirmação dado que as relações hierárquicas se encontram claramente definidas no estatuto recentemente aprovado desta magistratura. E, o grande problema que se verifica na eficácia da atuação do Ministério Público não tem nada que ver que com as relações de hierarquia existentes, mas sim com a gigante falta de magistrados que levou a que ficassem muitos lugares do quadro legal por preencher no recente movimento de magistrados do Ministério Público, que leva a que cerca de 50% dos magistrados se encontrem a acumular as suas funções de origem com outras e que os fenómenos de burnout e de baixas por doença sejam cada vez mais frequentes (consequência da pressão de ter uma carga processual/volume de trabalho muito acima do que seria razoável/desejável).
Quanto a “corrigir” a composição e funções dos conselhos superiores não se percebe em que é que isso iria “despolitizar” a justiça e contribuir para um “serviço público transparente e eficaz”. Ora, pelo contrário, quando se procura “politizar” a justiça e colocar as magistraturas na dependência do poder político é que se “mexe” na composição e funções dos conselhos. Basta atentar nos exemplos vindos de fora e das tentativas de subordinação do poder judicial ao poder político que passam por mexidas nos conselhos superiores.
Não se vislumbra onde se encontra a apontada relação entre uma hipotética desconfiança perante a justiça, as “referidas” relações hierárquicas na magistratura e a composição e funções dos conselhos.
Num outro plano, é de notar que a existência de greves, como a dos oficiais de justiça no inicio do corrente ano, deve ser encarada com normalidade e os consequentes adiamentos de diligencias são apenas uma decorrência dessa ferramenta de que dispõem os trabalhadores para reivindicarem melhores condições de trabalho ou a aprovação de uma carreira/estatuto condigno. Nenhuma estranheza deve causar o exercício legítimo do direito à greve.
Inaceitável é dizer que a sociedade não pode tolerar greves em nome dos elementares direitos dos cidadãos e das empresas. A própria greve é um direito fundamental de qualquer trabalhador (também no sector da justiça) e cujos efeitos são mitigados quando tal se imponha pela prestação de serviços mínimos.
Por fim, antes de incorporar “métodos organizacionais e instrumentos processuais mais modernos e avançados” há que analisar os meios que existem, nomeadamente a adequação dos sistemas informáticos e redes e a sua interligação. Cabe ao poder executivo disponibilizar os meios necessários para a eficácia dos sistemas informáticos e redes ou atribuir a gestão desses meios às próprias magistraturas no âmbito de uma autonomia financeira real e desejável.
O que de modo nenhum significa que os tribunais e os serviços do Ministério Público não atuem com a transparência que se impõe.
Não se pode é invocar essa transparência e, em nome dos direitos dos cidadãos, comprometer o essencial da justiça e a garantia de independência que está dá a estes mesmos cidadãos.