JUSTIÇA IMPERFEITA
SÁBADO, 27-05-2020 por António Ventinhas

Num momento em que se discute o racismo é bom olharmos para trás e para ” o dia da Raça” celebrada no Estado Novo. Este conceito surge nos anos 40 do século passado, num momento em que as raças não se referiam à cor da pele.


No dia 10 de Junho, comemora-se o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. A data é feriado nacional, onde ocorrem sempre grandes paradas militares, discursos sobre a diáspora portuguesa, elogios à universalidade da nossa língua e condecorações daqueles que se distinguiram a nível nacional em diversos domínios. O feriado condensa vários símbolos que se alteraram ao longo dos tempos. No século XIX começou a comemorar-se o 10 de Junho como o dia do aniversário de Luís de Camões.

O Estado Novo aproveitou a data para comemorar o dia de Camões, de Portugal e da Raça. A propaganda do regime transformou este dia num grande evento de celebração colectiva dos feitos dos portugueses ao longo dos séculos, exaltando o génio português e afirmando as características excepcionais do seu povo e das suas forças armadas, com vista a estimular o cidadão comum a defender intransigentemente a defesa das ” nossas responsabilidades históricas ” em África. Não é por acaso que a partir da década de 60 do século passado o feriado ficou intimamente associado a grandes paradas militares, destinadas a mostrar a importância da guerra colonial. Apesar de hoje o contexto ser completamente diferente, o 10 de Junho continua a ser um feriado muito ligado a celebrações militares.

Num momento em que se discute o racismo é bom olharmos para trás e para ” o dia da Raça” celebrada no Estado Novo. Este conceito surge nos anos 40 do século passado, num momento em que as raças não se referiam à cor da pele. A “raça Lusitana” surgia como uma raça guerreira e eleita, descendente de Viriato, destinada a dominar vastos territórios e a espalhar a fé cristã. Para alimentar este nacionalismo houve necessidade de construir locais simbólicos que exaltassem o orgulho nacional. Na década de 40 do século passado, o Castelo de S. Jorge era um monte de ruínas que praticamente foi construído a partir do chão. As muralhas e muitas das suas torres são uma construção do século passado e não remontam aos tempos medievais, como muitos pensam. O Castelo de Guimarães também foi alvo de profunda intervenção na mesma altura. A grande exposição do Mundo Português realizada em 1940 requalificou toda a zona de Belém e serviu para uma grande demonstração de força do regime e afirmação do orgulho nacional. A História de Portugal era ensinada nas escolas numa perspectiva heróica. A construção cultural de um conceito de raça diferente das outras teve consequências históricas dramáticas, com o seu expoente máximo no conceito de raça ariana. 

Se analisarmos bem a sociedade norte-americana, há uma visão da história e da sua missão no mundo que tem muitas semelhanças com o Estado Novo. Os Estados Unidos fomentaram nos seus cidadãos uma cultura belicista que legitima a intervenção militar externa para defesa dos valores americanos. Por outro lado, os defensores da supremacia branca defendem o conceito do verdadeiro americano. Segundo eles, o americano tem de nascer nos Estados Unidos, ser descendente de brancos e professar uma religião evangélica. Como é óbvio, para esses indivíduos, os judeus, católicos, latinos, hispânicos e negros não se enquadram nos americanos “puros”.   

Ao contrário de outros países, a sociedade portuguesa não tem grandes tensões raciais. Não há grupos organizados relevantes que defendam a supremacia lusitana ou tentem eleger candidatos de forma consistente. A extrema-direita da linha dura, racista, xenófoba e defensora dos valores nazis praticamente não tem expressão em Portugal. Nesse domínio há uma grande diferença que separa Portugal dos Estados Unidos da América. Por essa razão, não se pode cegamente transpor a realidade americana para o nosso País, designadamente nas apreciações que fazemos relativamente à nossa polícia. É no mínimo caricato que numa manifestação que se pretendia pacífica se apele à morte de polícias…

A polícia portuguesa tem a ingrata missão de assegurar a ordem pública, muitas vezes em situações extremamente complicadas. Em alguns casos os seus agentes correm risco de vida e o seu salário não é compatível com a responsabilidade do cargo que exercem. Não existe uma agenda racista na polícia portuguesa, antes pelo contrário. 

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