BOLSA DE ESPECIALISTAS
VISÃO, 06-02-2023
por Adão Carvalho, Presidente do SMMP
Na semana que passou foi notícia por toda a comunicação social a demora na localização de uma jovem em virtude de a autoridade que investigava o seu desaparecimento não ter podido obter, no imediato, a faturação detalhada, com localização celular, do número de telemóvel da vítima, relativa aos últimos seis meses.
O caso em questão deve servir de alerta para a imperiosa necessidade de legislação que clarifique o acesso e conservação de dados de tráfego/localização e a sua posterior utilização probatória.
Sem tal acesso/conservação a investigação de muitos fenómenos criminais será muito difícil ou mesmo, de todo, impossível.
Além das dificuldades investigatórias, a negação do acesso a tais dados pode representar a impossibilidade de salvar vidas.
Um quadro legal preexistente de várias normas a regular a mesma matéria, em algumas situações em, pelo menos, aparente conflitualidade, foi agravado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 268/2022, que veio declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que previa a obrigação de conservação de metadados para efeito de «investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes».
O referido Ac. veio gerar incerteza no quadro normativo já existente e potenciar alguma precipitação entre os aplicadores do direito sobre as consequências e efeitos a extrair da declaração de inconstitucionalidade.
A partir desse momento questões atinentes à utilização probatória dos metadados, quer sobre a validade de prova já produzida, quer na aferição da sua admissibilidade de produção, passaram a ser recorrentes nas várias fases do processo criminal, desde o inquérito ao julgamento, ao nível dos recursos ordinários ou de revisão, geradoras de várias interpretações e decisões díspares, que nada contribuem para auxiliar o aplicador do direito na resolução dos casos concretos.
Entretanto foram apresentadas na Assembleia da República algumas iniciativas legislativas com o intuito de conformar a legislação existente com o mencionado Ac. do TC, sem que decorridos mais de seis meses tenha ficado concluído o processo legislativo.
Com a abertura do processo de revisão constitucional foram apresentadas por três grupos parlamentares propostas sobre questões de acesso aos metadados das telecomunicações, sendo que os dois com condições para garantir a alteração constitucional apenas propõem alterações para permitir o acesso a esses dados pelos serviços de informações.
Em suma, não se vê fim à vista para o caos jurídico gerado no que se refere ao acesso e conservação dos metadados, constituindo uma incógnita o resultado dos processos de revisão constitucional e o de alteração da legislação atinente à matéria em questão.
Por outro lado, parece-nos aberrante, em termos de proporcionalidade entre direitos constitucionalmente consagrados, que os fornecedores de serviço de telecomunicações possam preservar os metadados para efeito de cobrança aos seus clientes das dívidas geradas pelo seu uso e fique vedado o acesso e conservação dos mesmos, pelas autoridades judiciárias, para efeito de investigação de crimes graves ou mesmo para acudir, em tempo útil, de forma a salvar a vida de uma pessoa perante uma situação de perigo em que a mesma se encontra.
O Estado não pode renunciar ao seu dever de proteção dos direitos fundamentais – da vida, liberdade e segurança das pessoas -, e para tanto terá sempre, dentro dos limites da proporcionalidade, de sacrificar outros, para prevenir, investigar e sancionar quem atenta contra aqueles.
Resta-nos, enquanto aguardamos um quadro constitucional e legislativo adequado e clarificador, apelar aos aplicadores do direito que encontrem e propiciem fóruns de discussão desta matéria, de forma a encontrarem caminhos mais uniformes de interpretação das normas vigentes, com uma elevada dose de bom senso e razoabilidade na aplicação e interpretação das mesmas.