O Declínio do Estado de Direito

Revista Sábado
Paulo Lona
Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
A Europa enfrenta desafios internos e externos que ameaçam o seu projeto político e humano baseado na democracia, no Estado de Direito e nos direitos humanos.
O Estado de Direito e a independência do judiciário obrigam a uma vigilância constante e salvaguarda contra os múltiplos ataques de que são alvo.
Nos últimos tempos, tem-se verificado uma preocupante tendência de deslegitimação do sistema judicial em diversos países, tanto na Europa como fora dela. Esta onda de ataques a magistrados judiciais e do Ministério Público não compromete apenas a independência dos tribunais, mas também coloca em risco o próprio Estado de Direito. Paralelamente, a Europa enfrenta desafios internos e externos que ameaçam o seu projeto político e humano baseado na democracia, no Estado de Direito e nos direitos humanos.
Olhemos para alguns exemplos recentes em França, Itália, Polónia, Hungria, Turquia, Israel e Estados Unidos da América.
França
Em França, Marine Le Pen, líder de um partido, foi ontem condenada a quatro anos de prisão (dois suspensos e dois em regime domiciliário com pulseira eletrónica) e declarada inelegível para o exercício de cargos públicos por cinco anos devido ao desvio de fundos públicos europeus. A decisão foi proferida pelo Tribunal Penal de Paris e impede Le Pen de concorrer às eleições presidenciais de 2027, nas quais era apontada como uma das principais favoritas.
O caso envolve o uso irregular de verbas do Parlamento Europeu entre 2004 e 2016 para financiar atividades do partido. Le Pen alegou a existência de motivação política no julgamento e diversos políticos, tanto na França quanto internacionalmente, vieram denunciar a decisão do Tribunal como uma “perseguição judicial”. O presidente do mesmo partido afirmou que a condenação representa “uma execução da democracia francesa”.
Estas afirmações ocorrem num contexto mais amplo de ataques ao sistema judicial por movimentos que frequentemente acusam os tribunais de perseguição política quando líderes políticos são responsabilizados por crimes. O sistema judicial é acusado de condicionamento político ainda que se limite a aplicar a lei.
Hungria
Na Hungria, o governo liderado por Viktor Orbán tem vindo a subverter a independência judicial através de reformas que consolidam o controlo político sobre os tribunais. Um exemplo claro foi a criação de um sistema paralelo de tribunais administrativos controlados pelo executivo, embora este tenha sido posteriormente suspenso devido à pressão internacional.
Além disso, os juízes enfrentam restrições crescentes à sua liberdade de atuação, enquanto o governo promove narrativas que desacreditam o sistema judicial como sendo elitista e desfasado dos “valores nacionais”. Esta estratégia enfraquece os mecanismos de controlo democrático e consolida o poder autoritário.
Israel
Em Israel, as reformas judiciais propostas pelo governo liderado por Benjamin Netanyahu geraram protestos massivos devido ao impacto na independência dos tribunais. As alterações incluem limitar o poder do Supremo Tribunal para rever decisões legislativas e dar ao governo maior controlo sobre a nomeação de juízes. Estas medidas têm sido criticadas como uma tentativa de enfraquecer os freios e contrapesos essenciais numa democracia.
Polónia
A Polónia tornou-se um dos exemplos mais visíveis da erosão da independência judicial na União Europeia. Sob a liderança do partido Lei e Justiça (PiS), foram implementadas reformas judiciais que enfraqueceram os tribunais e colocaram os juízes sob pressão política. Entre as medidas mais controversas estavam a redução da idade de reforma dos juízes e a criação de um regime disciplinar que permitia punir magistrados por decisões ou opiniões consideradas contrárias aos interesses do governo. Estas reformas levaram a condenações por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia, demonstrando o conflito entre o executivo e o poder judicial. Estas medidas têm sido, mais recentemente, revertidas.
Itália
Na Itália, magistrados têm sido alvo de ataques verbais por parte de figuras políticas que os acusam de agir como “militantes” ao invés de juízes imparciais. Estes episódios ilustram uma tentativa clara de desacreditar decisões judiciais que contrariam interesses políticos.
Os ataques contra o judiciário italiano, através da comunicação social e declarações públicas de altos oficiais do Governo italiano, causam profunda preocupação.
Os magistrados são acusados de conduzirem investigações e processos com viés político, sendo “vendido” à opinião pública o guião de um Judiciário que desempenha um papel de oposição ativa ao governo, agindo em desafio ao princípio da separação de poderes.
Tudo isto soa ainda mais alarmante tendo em conta os planos de reforma para alterar o quadro constitucional que até agora garantiu em Itália a independência do poder judicial como um todo.
Turquia
Desde 15 de julho de 2016, verifica-se uma clara subjugação do sistema judicial ao poder político. Atualmente, a Turquia encontra-se no centro de uma crise profunda de direitos humanos e legais, onde os mecanismos judiciais são cada vez mais vistos como instrumentos de controle político.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem repetidamente condenado a Turquia por violações de direitos fundamentais. O relatório da Comissão de Veneza, publicado em dezembro de 2024 sobre o Conselho Turco de Juízes e Procuradores (HSK), reafirmou essas preocupações. Observou-se que o poder do Presidente e do Parlamento para nomear quase todos os membros do Conselho dá ao executivo controle total sobre o órgão que deveria garantir a independência do sistema judicial, comprometendo inevitavelmente essa independência.
Estados Unidos (EUA)
Nos Estados Unidos, declarações públicas que questionam a legitimidade das decisões judiciais ou defendem o afastamento de juízes que tomam decisões contrárias a determinados interesses políticos têm gerado grande preocupação. A American Bar Association (ABA) condenou essas práticas, considerando-as uma ameaça à independência judicial e ao equilíbrio entre os poderes.
O atual presidente, Donald Trump, tem sido um exemplo notório de como líderes políticos podem desacreditar o sistema judicial através de ataques públicos direcionados a juízes, procuradores e advogados envolvidos em processos que o afetam diretamente.
Esta estratégia não apenas mina a legitimidade das decisões judiciais, mas também compromete a independência do sistema judicial, com consequências graves para o Estado de Direito e a democracia. Trump frequentemente descreve os processos judiciais contra si como politicamente motivados, utilizando essa narrativa para mobilizar sua base política e deslegitimar as instituições judiciais perante o público.
Além disso, Trump tem emitido ordens executivas e memorandos que visam penalizar escritórios de advocacia associados aos seus opositores ou envolvidos em casos relacionados consigo. Essas ações representam uma tentativa clara de intimidar profissionais jurídicos e enfraquecer a independência da advocacia.
As ações de Trump constituem uma ameaça direta à independência judicial, que é um dos pilares fundamentais da democracia americana. Ao transformar juízes, procuradores e advogados em alvos políticos, desestabiliza o equilíbrio entre os poderes legislativo, executivo e judicial.
Em conclusão:
Todos estes exemplos mostram que os ataques ao sistema judicial não são apenas uma questão interna dos países onde ocorrem, representam um desafio global à democracia e à proteção dos direitos fundamentais. Quando magistrados são desacreditados ou intimidados por defenderem princípios legais universais ou tomarem decisões contrárias aos interesses políticos, é o próprio Estado de Direito que se encontra em risco.
A independência judicial é um pilar essencial para garantir que todos os cidadãos tenham acesso a uma justiça imparcial e protegida contra abusos do poder executivo ou legislativo. Sem essa independência, os sistemas democráticos tornam-se vulneráveis ao autoritarismo e à erosão das liberdades individuais.
Em Portugal aqueles que procuram deslegitimar/desacreditar o sistema de justiça, atacando pessoalmente magistrados e investigadores e imputando-lhes motivações políticas ou pessoais, prestam também um mau serviço ao Estado de Direito e à Democracia.
Perante o modelo autoritário que alguns líderes mundiais tentam impor, é fundamental que a Europa permaneça como um projeto político e humano baseado na democracia, no Estado de Direito, na solidariedade e nos direitos humanos.